quinta-feira, 16 de junho de 2011

TEORIAS ANTROPOLÓGICAS DA RELIGIÃO

Stewart E. Guthrie
Universidade de Fordham
Tradução de Desidério Murcho

I. Introdução
Há uma diversidade de teorias antropológicas da religião. Baseiam-se ora em ideias de estruturas humanas sociais, emoções ou cognição. A maior parte concentra-se numa delas, mas algumas combinam mais de uma. Algumas olham para lá da natureza humana, para os outros animais, procurando análogos ou precursores da religião. Algumas teorias são próprias da antropologia, mas muitas foram tomadas de empréstimo. Assim, qualquer exame tem de ser também abrangente e de incluir material que não seja apenas antropológico. Ofereço aqui uma breve panorâmica histórica e um olhar sobre uma promissora abordagem contemporânea.

Nenhuma descontinuidade forte ou qualquer característica única distingue as explicações antropológicas da religião das suas antepassadas ou das explicações de outras disciplinas. Contudo, algumas características comuns tendem a agrupá-las separadamente. Destas, são centrais o humanismo, evolucionismo e comparações interculturais. O humanismo na antropologia quer simplesmente dizer que as explicações da religião (como os outros aspectos do pensamento e acção humanas) são seculares e naturalistas. Explicam as religiões como produtos da cultura e natureza humanas, e não como manifestações de algo transcendental, sobrenatural ou sui generis em qualquer aspecto.

O evolucionismo darwinista — a perspectiva de que todas as formas de vida são produtos da selecção natural — é também básico na antropologia, distinguindo-a de algum modo de outras disciplinas que estudam a religião. O evolucionismo não é surpreendente, é claro, na antropologia biológica, uma das suas grandes subdisciplinas. Mas mesmo na antropologia cultural, fundada pouco depois de Darwin, a selecção natural é fundacional. Na verdade, o evolucionismo cultural foi a "perspectiva com a qual a antropologia veio à vida" (Carneiro 2003: 287). Parcialmente em consequência disso, uma procura das origens e tendências de longo prazo caracterizou a disciplina desde o seu início e persiste ainda hoje. Uma dessas tendências de longo prazo, por exemplo, é as sociedades estratificadas, ao contrário das que não o são, atribuírem os seus sistemas morais a mandatos religiosos. Outra consequência parcial do evolucionismo é um certo apoio ostensivo do funcionalismo, a explicação das características dos organismos e das sociedades pelos seus efeitos positivos. Assim, explica-se por vezes a religião, por exemplo, pela coesão social que lhe é atribuída.

A terceira e última característica principal da teoria antropológica da religião é a comparação intercultural. Apesar de o método comparativo não ter origem na antropologia, tornou-se aí especialmente importante. Da perspectiva intercultural, o objecto de estudo último não é a religião em qualquer lugar ou momento do tempo particular, mas a religião em todo o lado e em qualquer momento do tempo.1 Tal estudo revela uma tal gama de crenças e práticas que quase exclui qualquer denominador comum (Saler 2000 [1993]). A diversidade parece excluir o ecumenismo, assim como qualquer "filosofia perene" comum (Huxley 1990 [1945]).

Assim, as questões de definição ganham proeminência. Estas questões são difíceis mesmo para os estudiosos que pertencem às poucas sociedades, relativamente semelhantes, que integram antropólogos. Quando tentamos comparar as religiões globalmente, a definição torna-se simultaneamente central e intimidadora. É defensável que esta situação desenvolva o humanismo, do mesmo modo que as notícias sobre religiões não ocidentais desenvolveu o iluminismo. Logo, estas três características da antropologia reforçam-se entre si.

Dada a grande diversidade de pensamentos e acções a que se chama religião, e dado que as linguagens não têm, na sua maior parte, palavra para tal coisa, levanta-se a questão de saber se a religião é universal. A resposta depende, é claro, da nossa definição. Quanto mais abstracta for a definição, mais difundido será aquilo que é definido. Se aceitarmos uma definição tão abstracta como a de Tillich (1948: 63), segundo a qual a religião é um comprometimento com um "cuidado último," então presumivelmente as pessoas são religiosas em todo o lado, dado todas considerarem que um dado cuidado é mais importante do que outros. Se, contudo, se estipula a crença em Deus, juntamente com a moralidade sancionada por uma vida depois da morte, então os religiosos constituem um grupo menor. Em qualquer caso, os antropólogos pensam, na sua maior parte, que a religião pode ser definida de modo tão amplo que seja virtualmente universal (Rappaport 1999; Crapo 2001; Atran 2002: 264).

2. Uma breve história
É útil dividir as teorias antropológicas da religião em três grupos: teorias da solidariedade social (ou da coesão social), teorias do sonhar alto e teorias intelectualistas (ou cognitivistas). As teorias da solidariedade social tomam as necessidades da sociedade como primárias e explicam a religião em termos do modo como esta as satisfaz, especialmente pela sua suposta promoção da harmonia e coesão. As teorias do sonhar alto tomam como primárias as emoções dos indivíduos e explicam a religião em termos do mitigar de sentimentos negativos, como o medo e a solidão, e da promoção da confiança ou da serenidade. Por fim, as teorias intelectualistas tomam como primária a necessidade humana de compreender o mundo. Desta perspectiva, a interpretação religiosa do mundo é, antes de tudo e principalmente, uma tentativa de compreensão. Cada uma destas teorias pode ser combinada com qualquer das outras duas, ou com ambas.

A teoria da segurança social tem sido a abordagem principal na antropologia desde a fundação desta última nos finais do séc. XIX. É uma forma de funcionalismo, dado explicar a religião pelo incutir nominal de fidelidade a uma sociedade. A religião consegue-o por meios simbólicos, usando roupas especiais, arquitectura, canto, dança e fórmulas verbais para aumentar sentimentos comunais. Na verdade, chama-se por vezes simbolismo à teoria da solidariedade social, querendo dizer que sustenta que a religião é uma actividade inteiramente simbólica que não se envolve com o mundo como um todo (como os seus executantes ou observadores poderiam pensar), mas apenas com as relações sociais humanas. Os seus símbolos podem estar ocultos e ser apreendidos apenas inconscientemente.

Que o simbolismo religioso unifica a sociedade não é uma ideia nova. Na Ásia oriental, por exemplo, o uso da religião pelo estado remonta pelo menos a 1027 a.C., quando a nova dinastia Chou citou a sua conquista dos povos subjugados como um sinal de que tinha recebido o mandato do Céu. As dinastias posteriores continuaram a fazer a mesma afirmação. Além disso, integraram Confúcio como uma figura quase religiosa que apoiava o estado, como fizeram os governos do Japão e da Coreia. No Japão tanto o culto de Shinto como o dos antepassados servia a unidade nacional. No ocidente ocorreu o mesmo: a perspectiva (e uso) da religião como forma de solidariedade social surgiu cedo e tem persistido. Começando pelo menos com Políbio, no séc. I a.C., e seguido por Bodin, Vico, Comte (Preus 1987) e Freud (e.g., 1964 [1927]), entre outros, e mais recentemente Wilson (2002) e Roes e Raymond (2003), muitos estudiosos sustentaram que a religião mantém a ordem social.

A teoria da coesão social, contudo, deve muito a Durkheim (1965 [1915]), que procurava saber como as sociedades mantêm a coesão. Afirmou que o conseguem em grande medida por meio da religião, que inclui crenças e práticas que são "relativas às coisas sagradas" e que organizam os seguidores em grupos de solidariedade. As coisas sagradas não têm de incluir deuses (o budismo, escreve Durkheim, é uma religião sem deuses): são seja o que for que represente os elementos essenciais da sociedade. As coisas profanas, pelo contrário, constituem uma categoria residual de tudo o que não é sagrado. A distinção feita pela religião entre o sagrado e o profano é o seu sinal característico.

Baseando-se em etnógrafos da religião aborígene australiana, Durkheim concluiu que o objecto principal de culto dos membros dos clãs australianos, o "totem," representa na verdade o próprio clã, e que é o clã que é sagrado. O mesmo princípio se aplica nas sociedades modernas complexas. O objecto explícito de culto, seja um totem, uma bandeira ou Deus, representa tudo o que é vital é portanto sagrado na sociedade. Ao formular e exprimir o sentimento de dependência mútua dos membros de uma sociedade, sentimento que de outro modo é apenas esporádico, a religião consolida-o e aumenta-o. Isto ajuda a fazer os membros comportar-se eticamente relativamente aos seus semelhantes e arregimenta-os em defesa da sociedade.

A teoria da solidariedade social tem vários pontos fortes, sobretudo o facto de as religiões parecerem muitas vezes ter produzido solidariedade (Wilson 2002) e de os líderes de várias sociedades terem usado esta capacidade. Contudo, a teoria tem também pontos fracos. A tese de Durkheim de que a característica central da religião é a sua dicotomia entre sagrado e profano, por exemplo, foi imediatamente alvo de objecções de etnógrafos que relataram que nas culturas que estudaram não encontraram tal distinção (Guthrie 1996).

Outro problema é que se a tese de que as religiões unem as sociedades é mais do que a tautologia de que as religiões unem os seus membros, então é preciso mostrar que as religiões emergem de grupos que têm outra base qualquer, que depois a religião fortalece. Mas na verdade há muitos tipos de grupos — famílias, aldeias, comunidades étnicas, estados — que a religião divide em vez de unir. Um corolário é que ao passo que os grupos sociais são alegadamente preservados pela religião, muitos têm ao invés sido destruídos por ela. Exemplos disso são os T'ai-p'ing Tao da China do séc. II a.C. e o Templo do Povo de Jonestown.

Por fim, é preciso responder a um problema de todo o funcionalismo: por que se adopta a característica em causa (a religião) no sistema em causa (uma sociedade) que dela beneficia? Os funcionalistas ignoram muitas vezes esta questão ou parecem tacitamente sancionar algo como uma explicação darwinista: as sociedades com um dado traço têm mais sucesso e portanto sobrevivem mais ou espalham-se mais. O traço sobrevive com elas.

A questão mais básica de como surgem os traços também é habitualmente ignorada. Pode-se conjecturar que surgem aleatoriamente, seguindo o modelo da mutação genética. A aleatoriedade, contudo, apesar de adequada para descrever mutações, é uma explicação empobrecida da origem de uma cultura. Sabe-se demasiado sobre os processos mentais humanos para os entregar ao acaso cego.

Além disso, os traços culturais, ao contrário dos genéticos, não são transmitidos biologicamente, tendo de ser aprendidos e muitas vezes também activamente ensinados. Logo, levanta-se a pergunta: o que motiva as pessoas a ensinar ou a aprender doutrinas ou comportamentos particulares? Esta pergunta torna-se mais aguda pelo facto de as pessoas que o fazem parecerem muitas vezes não estar cientes dos benefícios sociais atribuídos pelo observador. No caso da religião, por exemplo, poucas pessoas afirmam que rezam porque isso torna a sociedade mais coesa.

O facto de o funcionalismo vis-à-vis a religião (e a outras características das sociedades e dos organismos) persistir deve-se, talvez, não à sua plausibilidade sob análise mas por exercer uma certa atracção intuitiva mas enganadora. A atracção é que o funcionalismo zomba da propensão humana, de que nos apercebemos pelo menos desde Hume (1957 [1757]) e que foi pormenorizada experimentalmente por Kelemen (2004), para encontrar desígnio e propósito no mundo em geral. Esta propensão, mostra Kelemen, emerge espontaneamente nas crianças desde muito novas ("as nuvens existem para haver chuva") e permanece poderosa durante toda a vida. Kelemen mostra que esta tendência assume prontamente uma forma religiosa. Alguns religiosos actuais particularmente fervorosos, por exemplo, crêem ver um "desígnio inteligente" que rivaliza o evolucionismo como explicação científica da biologia. Contudo, esta crença parece revelar mais sobre as susceptibilidades perceptivas humanas do que sobre a biologia.

Assim, a teoria da coesão social de Durkheim e de outros não parece resistir às objecções a um conceito nuclear (a distinção sagrado-profano), aos contra-exemplos nos quais a religião não é um factor de coesão mas de dispersão, e por fim não consegue fornecer uma dinâmica credível da génese e transmissão da religião. Apesar de a religião muitas vezes unir os grupos e poder ser deliberadamente usada para esse propósito, não é por essa razão que as pessoas a adoptam. Além disso, a religião também separa muitas vezes os grupos.

A uma segunda colecção de teorias pode-se chamar a abordagem do sonhar alto. Segundo estas teorias, a religião serve de paliativo para a ansiedade e descontentamento humanos, imaginando uma condição mais satisfatória, seja no presente, seja no futuro. Ao postular um mundo no qual podemos melhorar-nos apelando a deuses, ou no qual o sofrimento da vida será compensado por uma vida melhor por vir, a religião torna a vida suportável.

Estas teorias têm também uma linhagem antiga. Vários autores têm observado que a religiosidade está correlacionada com a ansiedade, pelo menos desde a observação de Eurípides de que a tensão nos conduz, devido à "nossa ignorância e incerteza," a prestar culto aos deuses (Hécuba 956, in Hume1957 [1757]: 31). Analogamente, Diodoro Sículo escreveu que o desastre nos disciplina, fazendo-nos ter "reverência pelos deuses" (Hume 1957 [1757]: 31). Espinosa (1955), Feuerbach (1957 [1873]), Marx (Marx e Engels 1957: 37-38), e os antropólogos do séc. XX Malinowski (1955 [1925]) e Kluckhohn (1942) fizeram observações comparáveis.

O defensor da teoria do sonhar alto mais amplamente lido, contudo, é sem dúvida Freud (e.g., 1964 [1927]). Antropólogos que seguem Freud incluem Kardiner e Linton (1945), Spiro (1966), Wallace (1966) e La Barre (1972). Como Freud é discutido noutro capítulo deste volume (por Beit-Hallahmi), descreverei as suas ideias apenas brevemente. Para Freud, as religiões são delusões, "nascidas da necessidade de o homem tornar o seu desamparo tolerável" e são "ilusões, realizações dos desejos mais antigos, fortes e urgentes da humanidade" (1964: 25 e 47). As suas características particulares são "projecções" de emoções e experiências.

A noção de projecção, contudo, é uma metáfora enganadora, provavelmente baseada numa teoria popular da visão como toque (Guthrie 2000b). Entre outros problemas, implica que há dois tipos de percepção: projecção, que é subjectiva e falaciosa, e percepção improjectiva, que é objectiva e precisa. Esta implicação é contradita pelo facto de toda a percepção reflectir os interesses do agente perceptivo, não havendo um ponto de vista neutro.

Muitas religiões, além disso, não se adequam bem a qualquer teoria da realização dos desejos por terem características que é improvável que alguém deseje. As divindades de algumas são cruéis ou coléricas, e têm muitas vezes como complemento demónios ou fantasmas assustadores. Noutras, a vida depois da morte ou não existe ou é efémera, ou é um Hades ou outro lugar desagradável. Tais religiões podem ser tão ameaçadoras quanto promissoras. Como um antropólogo comentou (Radcliffe-Brown 1979 [1939]: 55), poder-se-ia igualmente sustentar que as religiões provocam "medos e ansiedades que de outro modo não existiriam."

Mesmo que no cômputo geral as ideias religiosas pendam para o conforto e não para a aflição, seria necessário explicar o que as torna credíveis. Não parece que acreditamos simplesmente no que nos poderia confortar. Como Pinker (1997: 555) faz notar, opondo-se à teoria do conforto, as pessoas que estão a morrer de frio não parecem confortar-se a si mesmas com o pensamento de que na verdade estão quentes.

Ao terceiro grupo de teorias chama-se intelectualismo, cognitivismo ou (por vezes) neo-tylorianismo. Estas defendem que a religião é primariamente uma tentativa de entender o mundo e de agir de acordo com esse entendimento. Uma dessas teorias, a de Tylor (1871), era a mais importante das primeiras teorias antropológicas da religião. Tylor, que é um humanista clássico, evolucionista e comparativo, descreve a religião como uma tentativa universal de explicar certas experiências humanas enigmáticas.

A teoria de Tylor, como acontece com as teorias anteriores da solidariedade social e do sonhar alto, tem predecessores. O seu comparativismo e aparentemente o seu humanismo recuam a Xenófanes (séc. VI a.C.), cujos fragmentos relatam que os seres humanos formam os seus vários deuses às suas diferentes imagens (Freeman 1966: 22). Os etíopes, por exemplo, fazem os seus deuses negros, ao passo que os trácios lhes dão cabelo vermelho. Muito depois, Espinosa (1955) e Hume (1957 [1757]), a que Tylor atribui a formação da opinião moderna sobre a religião, anteciparam melhor Tylor ao escrever que a religião popular, pelo menos, consiste em atribuir características humanas ao mundo inumano, para interpretar o que nos rodeia e que de outro modo seria enigmático.

Tylor acrescentou a estas ideias mais antigas uma ênfase na evolução cultural que, combinada com um comparativismo mais abrangente, reforçou a perspectiva naturalista da religião como mais um produto da actividade mental humana. Como comparativista, baseou-se sistematicamente nos relatos de viajantes, administradores, missionários e primeiros etnógrafos para ter descrições de crenças e práticas por todo o mundo, para encontrar um denominador comum das religiões. Via as diferenças culturais, incluindo religiosas, como um reflexo não da genética mas de formas de sociedade, dado que uma "unidade psíquica" de processos mentais comuns existe em todos os seres humanos. Estas ênfases tornaram-se parte do cânone antropológico.

Tylor concluiu que a religião se pode definir como animismo, uma crença em seres espirituais, e que esta crença emerge universalmente de duas experiências: sonhos e a morte de outras pessoas. Os sonhos são interpretados em todo o lado, afirmou, como visitas do que é objecto do sonho (Tylor chamou "fantasma" ao visitante). A morte, em contraste, é em quase todo o lado concebida como a partida de algo (a "vida"). O fantasma e a vida são então concebidos como uma só coisa, o "espírito." Isto é uma

imagem humana diáfana e insubstancial, sendo por natureza um género de vapor, película ou sombra; a causa da vida e do pensamento no indivíduo que anima; possuindo independentemente a consciência pessoal e a volição do seu dono corpóreo, do passado ou do presente; capaz de deixar o corpo para trás, de fulgurar subitamente de lugar para lugar; sendo na sua maior parte impalpável e invisível, manifesta contudo também poder físico, aparecendo especialmente aos homens, acordados ou a dormir, como um fantasma. (1979: 12)

Os críticos rapidamente acusaram Tylor de contar uma "história assim,"2 com poucos indícios a favor quer da ideia de que as noções de fantasma e vida surgiam como Tylor afirmava quer de que a noção de ser espiritual tem origem na sua conjunção. Apesar das suas fontes etnográficas abrangentes, os seus indícios a favor de tal origem parecem realmente circunstanciais. Foi também acusado, talvez justificadamente, de transformar as pessoas comuns em filósofos preocupados com a explicação e de ter negligenciado a emoção. Outros críticos ainda notaram que apesar de Tylor ter como pressuposto central a ideia de que os deuses são seres espirituais e portanto insubstanciais, na verdade as divindades de algumas religiões são corpóreas e substanciais — por exemplo, o Deus do cristianismo primitivo (Teske 1986).

A tese de Tylor sobre os sonhos e a morte e a sua ênfase na religião como cognição foram adoptadas por outros antropólogos por algum tempo, mas depois largamente abandonadas. O seu termo "animismo" sobreviveu, apesar de o significado ter mudado um pouco. Ao passo que Tylor tinha em mente uma crença em quaisquer seres espirituais, incluindo deuses monoteístas, hoje em dia tem-se em mente a crença em múltiplos espíritos. A doutrina de Tylor da unidade psíquica da humanidade também sobreviveu. A sua perspectiva de que a religião deve ser entendida como cognição, além disso, reapareceu nos anos sessenta do séc. XX com Robin Horton e uma vez mais depois de 1980 até hoje, na obra de muitos autores que se baseiam nas ciências cognitivas.

Horton, um antropólogo do povo calabar do Níger, estudioso da religião e da sua relação com o restante pensamento, oferece uma explicação intelectualista cuidadosa da religião (1960, 1967, 1973, 1982, 1993), sublinhando as suas semelhanças e continuidades com a ciência. Uma publicação antiga (1960: 211), seguindo a sugestão de Tylor de que as divindades se assemelham a seres humanos, define a religião como o "alargamento do campo das relações sociais das pessoas para lá dos limites da sociedade puramente humana." Isto é, as pessoas tomam aspectos do mundo inumano como se fossem significativamente como o mundo humano e igualmente capazes de relações sociais.

Subsequentemente, Horton argumentou (e.g., 1967) que o pensamento e acção religiosos não são fortemente diferentes do pensamento e acção científicos. Ambos são esquemas teóricos de "segunda ordem," afastados das teorias de primeira ordem do senso comum. O objectivo central de ambos é unificar a experiência reduzindo a complexidade e a desordem à ordem e à simplicidade; e ambos funcionam em termos de analogia e metáfora. O facto de a religião entender o mundo por analogia com os seres humanos, ao passo que a ciência evita isto mesmo, é superficial e uma mera diferença de linguagem.

Horton é influente como pioneiro do que hoje se chama a abordagem cognitiva da religião, apesar de se basear mais na filosofia da ciência e em trabalho de campo do que nas ciências cognitivas. A psicologia cognitiva recente e outras investigações relacionadas aprofundam e modificam o seu trabalho sublinhando processos inconscientes, arracionais, e mostrando que a nossa tendência para ver o mundo em termos humanos nem é superficial nem uma mera linguagem, estando antes muito difundida e profundamente enraizada (Lakoff e Johnson 1999; Carey 2000; Heberlein 2004; Kelemen 2004; Hassin, Uleman e Bargh 2005).

Uma figura final nesta breve história é Clifford Geertz, que em certa medida sintetiza os três grupos anteriores. O mais relevante é o seu muito citado ensaio "Religion as a Cultural System." Este ensaio é uma expansão da sua definição alargada de religião como "1) um sistema de símbolos que actua para 2) estabelecer disposições de espírito e motivações poderosas, muito difundidas e de longa duração nos homens, 3) formulando concepções de uma ordem geral da existência e 4) revestindo estas concepções com uma aura de factualidade de modo a que 5) as disposições de espírito e as motivações pareçam singularmente realistas" (1966: 4). Isto define a religião pela sua função, nomeadamente, motivar e inspirar os seus seguidores apresentando um mundo ordenado de significado. Responde a um humano desejo profundo de significado e unifica a sociedade com um sistema simbólico comum, interpretando o mundo como algo que tem uma ordem geral de existência.

Contudo, o ensaio não especifica claramente que tipo de significado oferece a religião, excepto para dizer que é um significado "último," nem explica precisamente por que este significado é convincente. Estas omissões dão à descrição de Geertz uma grande aplicação, mas deixam pouca motivação para a religião enquanto sistema cultural. O silêncio mais importante diz respeito à "ordem geral da existência," que está no coração da definição. O que está envolvido nesta ordem geral — ou quem — para nos encorajar? É-nos apenas dito que as particularidades da ordem são muitíssimo variáveis e, aparentemente, arbitrárias. A ordem permanece, no final de contas, como uma caixa preta (Guthrie 1993: 28-29). Entram na caixa os nossos problemas existenciais, e saem dela senão soluções, pelo menos refrigérios. Não nos é dito como a ordem funciona, mas apenas que fornece o significado de que precisamos.

Tanto o refrigério como o significado, contudo, são fenómenos caracteristicamente humanos. Assim, uma descrição possível, e mais específica, desta ordem geral da existência seria que é criada ou habitada por um ser ou seres humanóides — isto é, por algo como uma divindade ou divindades. Sendo assim, o seu conteúdo não será arbitrário nem infinitamente variável mas, como Tylor e Horton insistiram, terá como modelo as pessoas humanas. Restringindo-o deste modo, o sistema de Geertz seria menos amplo (apesar de ser ainda suficientemente amplo para incluir virtualmente todas as culturas) mas também ficaria numa base psicológica mais sólida.

3. Cognitivismo recente
Mais de um século depois de Tylor dar forma antropológica à perspectiva intelectualista da religião, e quase um século desde que essa forma perdeu a maior parte dos seus seguidores, surgiram novas formas de intelectualismo. Sublinham, na sua maior parte, processos inconscientes (ao passo que Tylor lidava com processos conscientes) e baseiam-se no novo campo das ciências cognitivas, sendo por isso denominadas "cognitivistas." Hoje em dia, estas parecem as teorias mais energéticas.

Os cognitivistas hoje em dia concordam em geral com Tylor e Horton que por religião entendemos algo que inclui relações com seres humanóides, ainda que não sejam humanos. Contudo, as suas teorias podem ser divididas aproximadamente em duas abordagens. Uma sustenta que as ideias religiosas emergem regular e inevitavelmente, porque são intuitivas (Guthrie 1980, 1993, 2002; Burkert 1996; Bering 2002; Kelemen 2004). As ideias intuitivas são produtos de "processos perceptivos e inferenciais espontâneos e inconscientes" (Sperber 1996: 89). Temos essas ideias sem saber porquê, e nem sabemos que as temos. Transmitem-se facilmente porque lembram aspectos que já nos são familiares.

Sobretudo, esta abordagem fornece uma nova explicação dos fenómenos intuitivos mais centrais das ideias religiosas, nomeadamente o animismo e o antropomorfismo. Esta explicação é que constituem descobertas aparentes mas erradas — isto é, falsos positivos — de animais ou pessoas, sendo produtos inevitáveis da nossa procura crónica de agentes importantes num mundo ambíguo. Esta procura por sua vez faz parte de uma estratégia que evoluiu para encontrar as características mais importantes no nosso ambiente perceptivo incerto. A incerteza perceptiva é aprofundada pela dissimulação natural que ocorre sob a forma de camuflagem. Daí que as nossas sensibilidades a possíveis agentes importantes e a traços de agentes (predadores ou presas, amigos ou inimigos) sejam tão facilmente despoletadas, não nos sendo possível evitar pensar muitas vezes que os detectámos quando isso não ocorreu.

A outra abordagem cognitivista é por vezes denominada epidemiologia cultural, pois é a noção (Sperber 1996) de que a cultura se espalha como uma doença. Os seus defensores sustentam que as ideias religiosas só surgem aleatória e esporadicamente, mas que estão muito espalhadas porque são memoráveis e por isso facilmente transmissíveis. São memoráveis porque são "contra-intuitivas" e consequentemente novas (Medin e Atran 1999; Barrett 2000; Boyer 2001; Pyysiäinen 2001).

Boyer (2001) é representativo desta segunda abordagem. Afirma que o seu termo central, "contra-intuitivo," é "técnico" e não "significa estranho [...] excepcional ou extraordinário" mas antes "contradizendo informação fornecida por categorias ontológicas" (2001: 65). Por exemplo, afirma, as categorias animal, pessoa e planta são ontológicas. Estas categorias dizem-nos que os seus membros têm propriedades biológicas distintas: estão vivas, precisam de nutrição, crescem, envelhecem e morrem. As ideias contra-intuitivas, segundo Boyer, incluem seres que não são animais, pessoas ou plantas e que contudo têm uma ou mais destas propriedades biológicas. Incluem também animais, pessoas ou plantas que não têm uma ou mais destas propriedades. Para que sejam mais facilmente recordados, os conceitos devem ser "minimamente contra-intuitivos," ou seja, devem ser familiares em alguns aspectos, mas não noutros. Um fantasma, por exemplo, é um ser humano com desejos, intenções e sentimentos comuns, mas que é também insubstancial.

Parece haver vários problemas nesta explicação. A mais importante é que o significado de "contra-intuitivo" não é claro. Boyer escreve que o seu sentido comum é enganador e que o "neologismo contra-ontológico poderá ser uma escolha melhor" (2001: 65). Como vimos, Boyer define contra-intuitivo como o que contradiz categorias ontológicas misturando as suas propriedades, em particular as de seres animados e inanimados. Contudo, as próprias categorias a que chama ontológicas e intuitivas, especialmente as biológicas, são controversas. Alguns investigadores (Carey 1985, 1995, 2000; Cherry 1992; Johnson e Carey 1998) afirmam que a biologia é aprendida, e não intuitiva. Até se resolver esta questão, não saberemos se os conceitos religiosos violam categorias ontológicas, sejam como for que as definamos.

Além disso, porque Boyer não define claramente o termo "categorias ontológicas," a sua definição de contra-intuitivo em termos dessas categorias é circular. Poder-se-á pensar que as categorias ontológicas têm uma qualquer base independente na ciência ou na natureza, mas Boyer afirma que não são "sempre verdadeiras ou exactas [...] São apenas o que intuitivamente esperamos, e nada mais" (2001: 68). Assim, as categorias ontológicas são definidas como as categorias, sejam elas quais forem, que são intuitivas, e o contra-intuitivo é definido como o que entra em conflito com elas. Mais tarde, Boyer e Barrett (2005) escrevem que as categorias ontológicas "intuitivas" diferem das categorias ontológicas "reais," mas os seus critérios permanecem pouco claros.

Os epidemiologistas caracterizam também o sobrenatural como contra-intuitivo e fazem dele a marca da religião. Mas a própria noção de sobrenatural é ocidental e uma vez mais controversa (Lohmann 2003). (Para confundir ainda mais as coisas, Boyer escreve noutro lado (2001: 158-59) que representamos intuitivamente agentes sobrenaturais.) Apesar de os epidemiologistas afirmarem que explicam a religião explicando o que a torna memorável, uma abordagem mais parcimoniosa da memória seria a teoria da informação. Esta sustenta simplesmente que um acontecimento é memorável na medida em que não for usual, tornando assim controversa a questão problemática do que é ou não é contra-intuitivo.

Um último problema com a teoria epidemiológica da religião é que é inconsistente com a evolução darwinista. Segundo Darwin, as características principais dos organismos, incluindo a percepção e a cognição, são seleccionadas devido à sua utilidade. Assim, a percepção e a cognição evoluíram para fornecer informação útil — ou seja, informação verídica que responde a necessidades específicas. Os epidemiologistas culturais, pelo contrário, afirmam que a mente humana evoluiu de modo a favorecer informação paradoxal e falsa ("contrafactual," afirmam). Alguns indícios, além do exemplo hipotético da religião, são necessários para o afirmar, e é necessário explicar esta estranha reviravolta evolutiva. A navalha de Occam recomenda que procuremos ao invés uma explicação mais económica da religião.

Tal explicação é oferecida pela primeira abordagem cognitivista mencionada. Esta abordagem sustenta que as ideias religiosas, e especialmente três características conceptuais particulares, estão muito espalhadas porque são intuitivas. As duas primeiras características são sentidos diferentes, mas relacionados, de "animismo": o de conceitos de seres espirituais (seres humanóides que podem ser invisíveis e/ou mais ou menos substanciais) e o de atribuir vida a fenómenos que os biólogos consideram não ter vida. A terceira característica é o antropomorfismo (a atribuição de características humanas a fenómenos inumanos). Estas três características estão ligadas e, numa certa medida, emergem de disposições e processos relacionados. Estão frequentemente presentes na religião, ou sempre.

A crença em seres espirituais que Tylor afirma definir a religião é ainda central para muitos ocidentais. Apesar de alguns deuses, como o Deus cristão primitivo, serem corpóreos e substanciais, muitos outros são invisíveis e mais ou menos insubstanciais. Contudo, a etologia, psicologia e filosofia recentes sugerem que estes seres não são contra-intuitivos para a maior parte das pessoas.

A etologia indica que, como resposta evolutiva ao nosso mundo biológico, somos mais sensíveis ao comportamento (ao movimento espontâneo ou irregular, por exemplo) do que à forma. Daí que sejam secundárias as questões de saber se um ser é corpóreo e como o é. Por exemplo, as crianças muito novas tentam interagir com telemóveis como se estes fossem seres sociais (Carey 1995: 279). Esta flexibilidade com respeito à corporização é reflexo de um mundo real no qual os animais escondem a sua forma de muitas maneiras. A sua aparência, consequentemente, é menos importante do que o modo como agem. Além disso, muitos animais obscurecem a sua localização e a direcção do seu movimento integrando-se, por exemplo, em cardumes ou bandos complexos. Acresce que formas minúsculas de vida como os vírus e as bactérias, têm sido simultaneamente invisíveis e intangíveis ao longo da maior parte da história humana, e no entanto os efeitos que têm em nós foram muitas vezes vistos como efeitos de agentes — demónios, por exemplo. Assim, a percepção inconsciente de agência sem forma ou localização definidas tem uma base na experiência ao longo da evolução humana.

Ademais, uma razão subjectiva para a agência incorpórea ser intuitiva é que concebemos os nossos eus e os eus alheios como imateriais. Um filósofo contemporâneo (Leider 1990) argumenta que na maior parte da autoconsciência o corpo está ausente a menos que tenhamos algum desconforto. Normalmente, a nossa atenção centra-se, ao invés, no nosso ambiente externo. Daí que a experiência normal seja incorpórea.

Além disso, a teoria humana da mente sustenta que as mentes — fenómenos que intuitivamente consideramos da maior importância — são por natureza inobserváveis (Malle 2005: 225). São postuladas por detrás de acontecimentos e não na sua superfície. Alimentado, talvez, "pela nossa profunda estima pela ideia de mente" (Wegner 2005: 22), imaginamos até um controlador invisível por detrás dos processos das nossas próprias mentes. Este controlador é o eu a que Lakoff e Johnson (1999: 268) chamam o "Sujeito," que em diferentes culturas é o "locus da consciência, experiência subjectiva, razão, vontade e a nossa "essência."" As pessoas concebem inconscientemente este Sujeito por todo o lado, sustentam Lakoff e Johnson, como algo imaterial e incorpóreo. Sendo incorpóreo, sobrevive à morte e, em algumas religiões, chama-se "a Alma ou Espírito" (563).

Indícios experimentais recentes indicam também que intuitivamente consideramos os nossos eus mais profundos incorpóreos e imunes à morte. Investigações de psicologia cognitiva (Bering 2002; Bering e Bjorklund 2004) sugerem que as crianças muito novas (e, em grande medida, os adultos) adoptam um modelo de senciência persistente depois da morte porque não têm um modelo de inexistência mental. Usando bonecos para contar às crianças uma história na qual um rato é comido por um aligátor, Bering (2002) descobriu que apesar de as crianças muito novas compreenderem que a morte do rato acabava com a sua capacidade para correr e comer, essas crianças supõem que mesmo assim o rato pode ter fome e ficar triste. Assim, a concepção da mente que estas crianças têm permanece a mesma, apesar de o corpo já não existir. Consequentemente, a sua pressuposição de um funcionamento mental persistente não surge como uma hipótese adicional, mas antes como a ausência de tal hipótese. Bering e Bjorklund concluem que a quase universalidade das crenças na vida depois da morte reflecte "tendências cognitivas inatas" sobre o estado mental de agentes mortos. Assim, muitos tipos de indícios convergem na sugestão de que o animismo, no primeiro sentido, uma crença em agentes humanóides mas incorpóreos, é intuitiva.

Um segundo tipo de animismo, sugerido por Piaget (1929, 1933) e hoje canónico entre psicólogos, é a tendência para "considerar que as coisas estão vivas e são conscientes" (1933: 537), isto é, para atribuir vida senciente a coisas que não têm vida. Indícios de várias fontes sugerem que também neste sentido o animismo é intuitivo (Tiedmann 1927 [1787]; Cherry 1992; Guthrie 1993, 2002). Um tipo de indício será aqui suficiente. Trata-se do nosso grupo multimodal de sensibilidades especiais a características dos nossos meios ambientes que possam revelar a presença de animais complexos, como insectos, peixes, répteis, aves e mamíferos (partilhamos muitas dessas sensibilidades com outros animais). Reagimos automaticamente a características como o movimento espontâneo (Darwin 1871; Heider e Simmel 1944; Michotte 1950; Poulin-Dubois e Heroux 1994), ocelos (Ristau 1998: 141), simetria bilateral (Washburn 1999) e rostos (Johnston 2001), cada um dos quais tendemos a interpretar como um sinal de vida.

A terceira característica conceptual da religião, o antropomorfismo — a atribuição de características humanas a coisas e acontecimentos inumanos — é também aparentemente intuitiva. Os indícios a favor do seu carácter intuitivo incluem a sua enorme diversidade e difusão em vários níveis de percepção e cognição (Cherry 1992; Guthrie 1993, 2002, no prelo; Mitchel, Thomas e Miles 1997; Kelemen 2004).

O animismo e o antropomorfismo são subprodutos de uma atitude cognitiva geral. Esta atitude estratégica (que inclui a atitude intencional) constitui uma boa aposta face à incerteza perceptiva. Presume que alguns fenómenos por identificar — vistas, sons, cheiros, etc. — que podem reflectir a presença de vida, incluindo humana, a incluem de facto. Ou seja, é uma atitude na qual há grande sensibilidade a sinais de vida possíveis, sendo muito baixo o limiar para os aceitar como tal.

Esta estratégia foi o produto da selecção natural (em nós e noutros animais) porque, como argumentei profusamente (1980, 1993, 1996, 1997, 2001, 2002, no prelo), o nosso mundo perceptivo é inerentemente ambíguo e porque quando formas de vida muitíssimo organizadas estão presentes é importante que as detectemos. Além disso, a ambiguidade da percepção é exacerbada pela dissimulação natural, incluindo a camuflagem e o mimetismo. Porque a maior parte dos nossos predadores, presas e pares sociais (incluindo os seres humanos) têm uma grande capacidade evolutiva para se dissimular, é uma boa estratégia presumir que qualquer forma ou som ambíguos que encontremos indica a sua presença.

A informação mais importante que podemos detectar habitualmente é que um animal qualquer — especialmente um ser humano — está por perto. Sob a incerteza perceptiva crónica, o nosso pressuposto inicial é consequentemente que os movimentos irregulares ou espontâneos, as formas semelhantes a rostos ou olhos, os sons novos, as simetrias, o "desígnio" e outros fenómenos salientes são sinais de que um qualquer ser animado está presente. Se presumirmos que um ser animado está presente podemos preparar-nos para fugir, lutar ou cooperar socialmente. Quando é verdade o que presumimos, ganhamos por estar preparados. Quando não é verdade, como tantas vezes acontece, pouco se perde. Retrospectivamente, chamamos animismo ou antropomorfismo a esse engano. Assim, estes enganos não são em si motivados, mas antes os subprodutos de um sistema cognitivo que é motivado. Este sistema evoluiu necessariamente para detectar organismos significativos seja onde for que possam existir.

4. Conclusão
Apesar de mais de um século de antropologia da religião, as suas teorias continuam a ser muito diversificadas e contenciosas. Nas últimas duas décadas, contudo, o cognitivismo voltou a apresentar-se como a orientação teórica principal. Das suas duas subdivisões principais defendi a que considera que o pensamento e acção religiosos são intuitivos.

Deste ponto de vista, o animismo e o antropomorfismo, centrais no pensamento e acção religiosos, não são únicos mas antes subconjuntos do nosso animismo e antropomorfismo gerais. Distinguem-se do conjunto geral apenas pela sua sistematização e gravidade relativas. Nenhuma linha clara distingue as religiões de outros pensamentos e acções. As religiões não foram em si seleccionadas pela evolução, nem constituem um fenómeno unitário. Ao invés, são uma família de efeitos secundários das nossas propensões perceptivas e cognitivas, ligadas entre si pela nossa procura de ordem e significado.

As religiões, como outras formas de animismo e antropomorfismo, podem ter diversos fins. Contudo, esses usos não explicam a sua existência nem garantem que são benéficos. Em última análise, as religiões são produtos do acaso evolutivo: consequências inintencionais de produtos evolutivos prévios. Procurar uma função das religiões, que é a nossa tendência intuitiva, é um aspecto da teleologia. Essa teleologia, que pressupõe que há significado e propósito no mundo em geral, é em si apenas outra componente do nosso antropomorfismo.

Stewart E. Guthrie

Tradução de Desidério Murcho. Retirado do livro Um Mundo Sem Deus: Ensaios sobre o Ateísmo, dir. Michael Martin (Lisboa: Edições 70, 2010).
Notas
Os antropólogos pós-modernistas, contudo, condenam o comparativismo e sustentam que só se pode interpretar uma cultura de cada vez.
Referência ao livro Just So Stories (1902), de Rudyard Kipling, traduzido em Portugal com o título Histórias Assim Mesmo (Caminho, 1999). Neste livro explica-se às crianças e jovens, de forma engraçada e imaginativa, mas sem base na realidade, vários factos do mundo natural, como as bossas dos camelos. Em biologia e noutras ciências chama-se histórias assim a explicações feitas à medida, mas sem base na realidade, como explicar o nariz dos seres humanos afirmando que existe para que possamos usar óculos. N. do T.
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http://criticanarede.com/antropologia.html

ANTROPOLOGIA INTERPRETATIVA

A antropologia interpretativista por Geertz

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: vozes, 1997.

"Do ponto de vista dos nativos": a

natureza do entendimento antropológico (85 - 107)

85- "Há alguns anos, um pequeno escândalo irrompeu na antropologia: uma de suas figuras ancestrais falou a verdade em público (...). Aconteceu que foi descoberto e publicado um diário de B. Malinowski relatando os métodos oficiais de trabalho utilizados pelos antropólogos, de forma tão clara e objetiva que para eles, aquilo era inacreditável, mas já era tarde e já estava feito. "O mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo, foi de um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez, um dos maiores responsáveis pela sua criação".

86-" A questão que o diário introduz, com uma seriedade que talvez só um etnógrafo da ativa possa apreciar totalmente, não é uma questão ética. (...). É uma questão epistemológica. (...). Se na antropologia é necessário que o pesquisador veja o mundo dos nativos a partir do ponto de vista deles próprios, até onde vai o fator psicológico e a identificação e, de certa forma também o choque cultural com o sujeito tomado por objeto de estudo. "O que acontece com o verstehen quando o einfuhlen desaparece?".

87- O problema que passou a ser constantemente discutido após a descoberta do diário de Malinowski fez comque fossem criadas variadas formulações para tal problema, a antropologia estava sendo estudada e feita baseada em descrições do tipo: "descrições feitas "de dentro" versus as que são vistas "de fora", ou descrições na "primeira pessoa" versus aquelas na "terceira pessoa"; teorias "fenomenológicas" versus "objetivistas", ou "cognitivas" versus "comportamentais;"" (...). "A forma mais simples e direta de colocar a questão é, talvez, vê-la nos termos de uma distinção, formulada pelo psicanalista Heinz kohut para seu próprio uso, entre o que ele chamou de conceitos da "experiência próxima" e da "experiência-distante". Experiência próxima seria aquilo que alguém conseguiria definir (um conceito) sem esforço, ou seja, de forma espontânea aquilo que seus semelhantes vêem, sentem e que ao mesmo tempo também entenderia se os demais assim o fizessem. Já um conceito de experiência-distante seria aquele utilizado pelo especialista para alcançar seus objetivos dapesquisa dada, seja ela cientifica, filosófica, enfim.

88- Esses conceitos na antropologia não são necessariamente um melhor que o outro, mas a forma como são utilizados faz grande diferença no momento da pesquisa. "...Ou, mais exatamente, como devem este ser empregados, em cada caso, para produzir uma interpretação do modus vivendi de um povo que não fique limitada pelos horizontes mentais daquele povo- uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa- nem que fique sistematicamente surda às tonalidades de sua existência- uma etnografia sobre bruxaria escrita por um geômetro."

88- O objetivo de se conduzir uma análise antropológica e estruturar seus resultados de forma mais "satisfatória" é saber captar os conceitos de experiência próxima e experiência-distante e interagi-los com o objeto de estudo para que tanto para as pessoas que se relacionam através de ambas as experiências consigam entender estabelecendo uma conexão esclarecedora com ambos os conceitos teóricos, que retrataram os meios gerais da vida social do objeto e do grupo de pesquisa, que está sendo investigado. "O truque é não se deixar envolver por nenhum tipo de empatia espiritual interna com seus informantes".

89- "O que é importante é descobrir que diabos eles acham que estão fazendo".

"A meu ver o etnógrafo não percebe- principalmente não é capaz de perceber- aquilo que seus informantes percebem. O que ele percebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é o "com que", ou "por meios de que", ou "através de que" (ou seja lá qual for a expressão) os outros percebem".

89-90- O objetivo de Geertz em suas pesquisas era tentar identificar como as pessoas que vivem nessas sociedades se definem como pessoa..., procurando e depois analisando as formas simbólicas (palavras, costumes, rituais, imagens, comportamentos, etc.) existentes dentro de cada grupo investigado pelo antropólogo e a forma como aquelas pessoa se reconhecem naquilo a forma como são reconhecidas pelo grupo, através desse auto-reconhecimento do EU. Assim a autor trabalha, tentado encontrar no seu objeto de pesquisa a visão de "eu" que cada uma das sociedades estudadas por ele tem de si enquanto pessoa, e a partir disso traçar o perfil e a forma como aquela definição está diretamente ligada ao reconhecimento social do grupo construindo, portanto a personalidade do individuo, podendo-se ser traçado o perfil de determinada sociedade.

91- "Em vez de tentar encaixar a experiência das outras cultura dentro da moldura dessa nossa concepção, que é o que a ao elogiada "empatia" acaba fazendo para entender as concepções alheias é necessário que deixemos de lado nossa concepção, e busquemos ver as experiências de outros com relação à sua própria concepção de "eu".

91- A partir do ponto II do texto, Geertz vai explanar as experiências que teve em cada uma das sociedades estudadas por ele, no primeiro caso a javanesa, nos anos 50. Nessa sociedade as pessoas definiam o "eu" a partir da concepção que tinham segundo os costumes e crenças do local. "As idéias centrais em cujos ermos estas reflexões se desenvolviam e que, portanto, definiam seus limites é osignificado de "pessoa" para os javaneses, eram dispostas em dois conjuntos contrastantes que tinham como base a religião: um entre "dentro" e "fora" e o outro entre "refinado" e "vulgar".

"Com respeito a nossa problemática- a concepção do eu- o que temos aqui é uma concepção bifurcada sendo uma de suas partes constituída por sentimentos meio sem gestos e a outra por gestos meio sem sentimentos.

95- Em Bali, a definição do eu, da concepção de pessoa, estava estritamente ligado ao que ele representava socialmente falando, qual o seu papel ( no sentido de drama social, teatral) nesta sociedade. " Não existe faz de conta, é claro que os atores morrem, mas a peça continua, e é o que foi atuado, não quem atuou, que realmente importa".

98- Ainda sobre os balineses continua: "... o que se teme é que odesempenho, em público do papel para o qual fomos selecionados por nossa posição cultural, seja um fracasso, e que a personalidade do individuo se rompa, dissolvendo sua identidade pública estabelecida.

98-99- No Marrocos é um sistema complexo (a meu ver) de definição dos indivíduos na sociedade. A forma como é separada para que se pessoa identificar o tipo de "gentes" e identificar o que significa ser uma pessoa, é feita através de um meio característico e um dos mais importantes através de uma forma lingüística peculiar árabe chamada de nisba.

Estas nisbas e suas variações morfológicas definem e através desta definição torna-se possível identificar o sujeito com seu nome pessoal, o grupo social ao qual pertence, grupo familiar, enfim, toda a estrutura social dos indivíduos.

102- Uma das características assim como em Java e Bali, é o fato de que existem em situações públicas estas formulações e identificações do "eu" entram em contraste tanto com a variedade de ser humano quanto da própria vida privada do individuo.

103- "Para este tipo de estrutura social, uma concepção do "eu" marca a identidade pública contextualmente e relativisticamente, mas o faz em condições que se desenvolvem nas esferas privadas e estabelecidas da vida, onde tem uma ressonância profunda e permanente, parece ser particularmente apropriada.

105- Para entender o que Geertz colocou ao afirmar que através do reconhecimento do "eu" é possível conhecer uma determinada sociedade, pode-se dizer, segundo as palavras do autor que: "... é um bordejar dialético contínuo, entre o menor detalhe nos locais menores, e a mais global das estruturas globais, de tal forma que ambos possam ser observados simultaneamente. (...). "Saltando continuamente de uma visão da totalidade para através das várias partes que a compõem pra uma visão das partes através da totalidade que é a causa de sua existência, e vice-versa, co uma forma de moção intelectual perpétua, buscamos fazer com que uma seja explicação para a outra."

106- "Em suma, é possível relatar subjetividades alheias sem recorrer a pretensas capacidades extraordinárias para obliterar o próprio ego e para entender os sentimentos de outros seres humanos."

107- "Porém, a compreensão depende de uma habilidade para analisar seus modos de expressão, aquilo que chamo de sistemas simbólicos, e o sermos aceitos contribui para o desenvolvimento desta habilidade."

Idéia central do texto:

Geertz propõe a idéia de que não PE preciso "tornar-se um nativo", para conseguir entendê-lo, entender sua cultura, a forma como este está inserido dentro do contexto social relativo a sua sociedade, ou seja, a forma como se vê e ao mesmo tempo é visto pela demais. A compreensão não depende somente "encarnar o espírito do nativo", "empatia" com o objeto de investigação, não agir de forma a tentar ser um deles adaptando-se e vivendo de acordo com seus costumes e crenças, pois não há como pensar como u nativo a menos que seja de fato um deles enfim, é necessário ir, além disso, a compreensão antropológica de determinada cultura está para além dessa "empatia" e do enquadramento da cultura estudada dentro das concepções de cultura do pesquisador como propunha a antropologia conservadora da época até a descoberta do diário de Malinowski, problema este que já vinha sido discutida há muito tempo.

Em suma, o que o autor propõe é que é necessário tentar compreender o individuo a partir do que ele entende por si próprio, o "eu", e a partir deste conhecimento levar em consideração e tentar mesclar os conceitos de "experiência próxima" e de "experiência-distante", fazendo-se desta forma com que não se percam partes do todo e da mesma forma entender o todo a partir das partes, identificando os aspectos gerias e essenciais da sociedade pesquisada, a maneira como estes indivíduos estão dispostos na estrutura social e de como isso reflete, interfere, relaciona com a identidade do seu "eu", descobrindo tias funcionamentos não a partir da "encarnação de espírito" mas da identificação e compreensão do sistema de símbolos que rege seus pensamentos, valores, comportamentos, que determinam aquilo que acreditam ser.

Ao usar este artigo, mantenha os links e faça referência ao autor:
Antropologia Interpretativa publicado 24/02/2010 por Ruth Rodrigues em http://www.webartigos.com
Fonte: http://www.webartigos.com/articles/33233/1/Antropologia-Interpretativa/pagina1.html#ixzz1PVD7tdbf

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Curso Livre de Folclore


O Curso Livre de Folclore e Cultura Popular , criado em 2000, é um mecanismo de formação ágil e informal que atende à demanda crescente do público interessado nesse campo de estudos, aproximando-o dos diferentes e complexos sistemas culturais que constituem o amplo universo do folclore e da cultura popular no Brasil.

Temáticas dos últimos cursos:
2004 – Música e festas populares
2005 – Educação, cultura e patrimônio
2006 – Cultura material
2008 – A palavra como expressão da cultura popular
2009 – Imagem e cultura popular
2010 – Biografias: trajetórias e escritas culturais

Público
Estudantes de ciências humanas, profissionais das áreas de educação e cultura, estudiosos em geral.

Vagas
Anualmente cerca de 75.

Período
O Curso Livre de Folclore e Cultura Popular ocorre, em geral, no mês de julho.
Inscrições são abertas em torno do mês de junho de cada ano.

Local
Auditório do Museu de Folclore Edison Carneiro
Catete – Rio de Janeiro (RJ) – CEP 22220-000
Telefones: (21) 2285-0441 e 2285-0891 – ramais 214 e 215

INFORMAÇÕES

PORQUE VISITAR MUSEUS?

Infelizmente ainda estão distante de serem um dos locais mais desejados e visitados pelo público brasileiro em geral. Nos referimos aos museus, que permite sim uma grande satisfação para quem tem verdadeiro interesse em fazer e desenvolver uma análise de diferentes períodos de nossa história. Não necessariamente de nosso passado. Os museus possuem também a capacidade de revelar para o visitante que ele mesmo - como tal - faz parte do processo histórico. É aí que este humilde artigo pretende revelar, de forma sucinta, o que está envolvido numa simples visita a um museu. Talvez respondendo perguntas como: o que podemos aprender indo aos museus? O que podemos fazer antes de irmos a um determinado museu?

Origens

A primeira exposição de objetos organizada ocorreu há muitos séculos por meio do então Papa Pio XI. Tratava-se de um acervo composto de artefatos religiosos. Até hoje, em Roma, existem inúmeros objetos antigos que ilustram verdadeiras relíquias da religiosidade cristã, muitos deles podem ser vistos no Museu do Vaticano. Outro exemplo que merece destaque fica por conta do Museu de Alexandria é um verdadeiro templo cultural, freqüentado por figuras ilustres como o filósofo Aristóteles. Sim, tratava-se do filósofo que educou Alexandre o grande. Dentre os bibliotecários havia podemos destacar Aristófanes de Bizâncio (257 - 180a.C). Este museu oferece um leque muito diversificado no que diz respeito às atividades culturais. Em seu interior aprendia-se muito, pois a biblioteca contava com aproximadamente 500.000 volumes. Toda área foi destruída pelo fogo em 641 d.C. Temos abaixo uma ilustração do Farol de Alexandria:



Já com o período do renascimento, na Europa, onde a centralização do universo transfere-se de Deus para o Homem, os acervos ganharam requinte, ganharam suntuosidade, ganharam uma grande variedade e espaço, no sentido literal da palavra. Muitos objetos eram oferecidos por famílias da alta burguesia, que tinham o prazer de ver seus objetos expostos para outros bem abastados apreciar, evidentemente.

Alguns Destaques do Brasil

Inaugurado em 1890 (edifício-monumento), o Museu Paulista de São Paulo, com exposições divididas em três áreas: objetos, iconografia e documentação textual, oferecendo uma agradável oportunidade para se conhecer um pouco mais sobre a História do Brasil. Período situado no século XVII, a exposição está envolvida ao período do processo de independência do Brasil. A disposição dos objetos permite um passeio ao cotidiano da alta burguesia paulista, na ocasião sustentada por meio da cultura cafeeira. Lá, se pode apreciar ambientes inteiros, que foram remontados preservando assim os mais particulares detalhes da época.

O Museu Paulista, também chamado Museu do Ipiranga, oferece ainda a beleza e a exuberância que estão à parte das exposições: o próprio edifício que abriga os objetos foi projetado em estilo europeu, imponente com riquíssimo acabamento externo, com grandes "terraços" e um sublime acabamento interno em mármore e gesso como pode ser presenciado, principalmente no salão nobre - salão este que abriga o maior quadro de todo acervo do museu, O Grito da Independência, obra de Pedro Américo.

A arte fora do "Ipiranga"

O belga Arsenius Puttemans foi o responsável pela construção, em 1909, de um belo jardim localizado à frente do edifício-monumento. Projetado e baseado no paisagismo barroco francês, ele compõe (com harmonia) o conjunto arquitetônico do museu. Nele pode-se ver ainda a beleza das águas que descem em forma de degraus. Mais tarde, este jardim foi ampliado em 1500 metros quadrados. O local está ainda mais "vivo" em beleza isto porque houve um processo recente de restauração com participação da iniciativa privada. Desta forma, as cores estão com maior presença, revelando mais de perto o projeto.

O Rio de Janeiro também "guarda" História

Em agosto de 1922, na cidade do Rio de Janeiro, foi inaugurado, por decreto do então Presidente Epitácio Pessoa, o Museu Histórico Nacional. Este museu foi de suma importância para o país, pois foi a partir de seu funcionamento que se desenvolveu no Brasil o primeiro curso de museologia e também, com advento do museu houve a construção de outros museus no país. Seu acervo oferece muitas alternativas, seja em exposições itinerantes ou permanentes. Exemplos: Colonização e Dependência, Farmácia Teixeira Novaes, Memória do Estado Imperial, No Tempo das Carruagens, As Moedas Contem a História, entre outras. Este museu conta com uma estrutura formidável, principalmente no sentido de conservação e restauração dos acervos, cursos, etc. Vale a pena conferir uma pequena parte do acervo abaixo:





Destaques do Mundo

Museu do Vaticano - Roma (fundado em 1784)
Museu Egípcio - Cairo (fundado em 1835/1900)
Museu do Louvre - França (fundado em 1793)
Museu/Biblioteca de Alexandria (fundação em 280 a.C)

Diferentes Tipos de Acervos no Brasil e no Mundo

Nos dias de hoje podemos identificar museus que apresentam diferentes modalidades de acervos. Em São Paulo, por exemplo, há o Museu do Imigrante, Museu da Imagem e do Som, Museu da Arte Sacra, entre tantos outros. Na cidade do Rio de Janeiro, existe o Museu do Teatro, Museu do Primeiro Reinado, Museu dos Esportes, existe ainda o Museu Histórico Nacional, etc. Nos EUA existe o Museu Natural, na verdade, trata-se de uma grande área natural com fragmentos de fósseis de animais pré-históricos como Dinossauros. Uma extensa área preservada que passou a ser visitada pelo público, transformando-se, portanto, num museu.

Afinal, porque visitar museus?

Em pleno século XXI, podemos presenciar cursos especializados que procuram tratar da importância dos museus, tanto em preservação como também em ação. A dimensão da chamada museologia trabalha nesta dimensão. Ir ao museu hoje, não significa ficarmos limitados a observar objetos expostos. Como podemos ver, foi no Rio de Janeiro que se iniciou o primeiro curso de museologia. Esta disciplina revela as diferentes dimensões que envolvem interessantes questões como:

Porque é necessário nos preparamos antes de visitar um museu? O que pode ser recomendado? Como organizar um acervo no museu? Como identificar a estrutura histórica em cada museu? Essas e outras questões são perfeitamente esclarecidas num curso de museologia.

Exposições itinerantes - são exposições cujo acervo é freqüentemente removido para outros museus e eventos culturais. Podemos citar o exemplo no Brasil quando houve a oportunidade de se ver a carta original de Pero Vaz de Caminha (comemorações dos 500 anos do país), este documento pertence aos registros de Portugal, entretanto, foi trazido para o Brasil para compor o acervo comemorativo. Por outro lado, as exposições fixas são àqueles acervos que não deixam seu local preservado.

Considerações Finais

Relativamente ao Brasil - É extremamente preciso haver mais vontade tanto da parte dos governantes, no sentido de executar parcerias efetivas com a iniciativa privada, parcerias que ofereçam acesso sincero às diferentes condições sociais da comunidade brasileira. Infelizmente o acesso à cultura é muito precário - com isto - há grandes chances de desenvolver, com este cenário do país, uma sociedade problemática com respeito a novas mentalidades e satisfação social. Os investimentos ainda estão muito distantes de ser suficiente para promover o acesso verdadeiro a diferentes áreas da cultura como: a leitura, o teatro, a música, os museus, os cinemas, etc. Combater a desigualdade seria um importantíssimo passo para começar as transformações necessárias.

Referência Bibliográfica:

http://www.mp.usp.br/
http://www.museuhistoriconacional.com.br/
http://www.egyptianmuseum.gov.eg/
Visita de campo - Museu Paulista de São Paulo (USP)
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=662

HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA

uma aproximação profícua

Euges Lima


Nas últimas décadas do século passado, sobretudo nos anos de 1970 e 1980, a historiografia passou por um processo de renovação. Esse novo e fértil momento da produção historiográfica ficou conhecido como “virada antropológica”. É sobre essa relação entre história e antropologia, a aproximação entre essas duas áreas do conhecimento - que alguns já denominam de história antropológica -, que pretendemos discutir e analisar.
Dentre as ciências sociais, podemos afirmar que a história é uma das que mais se desenvolveram nas últimas décadas e essa evolução se deu, sem dúvida, por conta do caráter interdisciplinar imprimido pela produção historiográfica contemporânea. Os horizontes dos historiadores se expandiram, novas temáticas, novos objetos e novos métodos foram adotados.Tudo isso, graças à aproximação da história com a antropologia.
Mas essa perspectiva cultural é realmente tão nova assim? Será que essa abordagem nasce com a Escola dos Annales, ou melhor, com o Movimento dos Annales? Não, já nos séculos XVIII e XIX, historiadores como Legrand d’Aussy e Michelet se ocupam do campo desprezado pela história factual, dos acontecimentos, ou seja, se preocupam em estudar uma história social dos costumes dos franceses, das mentalidades; uma história com uma abordagem cultural, mais estrutural que factual. Em 1782, Legrand d’Aussy, por exemplo, já demonstra a sua insatisfação com o tipo de história que se vinha fazendo até então, uma história essencialmente política e voltada para os grandes acontecimentos, assim como, para os feitos dos reis, generais, etc.
Vejamos como Legrand d’Aussy, já nos séc. XVIII, em “História da Vida Privada dos Franceses”, faz severas críticas a esse tipo de história - factual - que era predominante na época:

“Obrigado, pelos grandes acontecimentos que deve contar, a estudar o que não se oferece a ele com certa importância, ele só admite na cena os reis, os ministros, os generais de exército e toda aquela classe de homens famosos cujos talentos ou erros, esforços ou intrigas produziram a infelicidade ou a prosperidade do Estado. No entanto, o burguês em sua cidade, o camponês em sua choupana, o gentil-homem em seu castelo, o francês, enfim, no meio de seus trabalhos, de seus prazeres, no seio de sua família e de seus filhos, eis o que não nos pode representar”.

Para o historiador cultural contemporâneo dos séculos XX e XXI, essa perspectiva histórica que insere os chamados grupos subalternos na história, que percebe na cultura de uma sociedade um objeto histórico, parece algo muito pertinente e até certo ponto natural. Como disse André Burguière (LE GOFF, 1993, p.125), poderíamos muito bem pensar que essa citação acima que expressa sobre as insuficiências do historiador, fosse de um Lucien Febvre ou até mesmo de um Jacques Le Goff ou ainda de um George Duby. No entanto, trata-se de um olhar etnológico no século XVIII, que torna Legrand um historiador além do seu tempo, em que para ele a história é “uma mistura constante de comportamentos herdados (portanto de permanências) e de fenômenos de adaptação ou de invenção”.
Um outro precursor do que hoje conhecemos como nova história cultural é Michelet. No século XIX, em meio a uma história positivista norteada por uma metodologia inspirada nos moldes das ciências experimentais, onde o elemento básico era o fato histórico, ou seja, o acontecimento; Michelet surge como um historiador que busca outros modelos de explicação da sociedade, uma história da moda alimentar, da sensibilidade, do comportamento das elites francesas no século XVIII, das mentalidades, enfim, uma história etnológica. Nesse sentido, assevera Jacques Le Goff (1993, p.22): "Lucien Febvre ontem, um Fernand Braudel hoje, que primeiro viram em Michelet o pai da história nova, da história total que quer abarcar o passado em toda a sua totalidade, desde a cultura material até às mentalidades".
Como vimos nesse breve histórico das origens da nova história cultural, Marc Bloch e Lucien Febvre tiveram em quem se inspirar e são eles que em fins dos anos 20, na França, vão fundar a revista dos Annales, como uma forma de demonstrar toda a sua insatisfação com relação à história política, permeada por análises pobres e concepções redutoras e centralizadoras, que reduziam o campo histórico ao domínio da vida pública. É a partir daí que esses historiadores vão resgatar, ou melhor, reaproximar a etnologia da história, contribuindo sobejamente para renovação do conhecimento histórico contemporâneo.
Comumente, a chamada Escola dos Annales, é dividida em três gerações, a primeira representada por Lucien Febvre e Marc Bloch - seus fundadores - a segunda notadamente representada pela liderança de Fernand Braudel e por fim, a terceira, integrada entre outros, por Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie.
É a partir dessa terceira geração, que a dimensão antropológica se fazer mais presente na historiografia contemporânea. Surgida em fins da década de 1970, como uma reação à história quantitativa , predominante na geração anterior, esse movimento, denominado “virada antropológica”, "pode ser descrito, com mais exatidão, como uma mudança em direção à antropologia cultural ou 'simbólica' " (BURKE, 1997, p.94). Os historiadores dos anos de 1970 e 1980 estabeleceram um diálogo mais intenso e profícuo com a antropologia, vários antropólogos como Pierre Bourdieu, Michel de Certeau, Erving Goffman e Victor Turner vão influenciar os trabalhos desses historiadores. As idéias que migraram da chamada "nova antropologia simbólica" para história, foram adotadas, adaptadas e utilizadas para construir uma história mais antropológica.
A inserção de novas temáticas, assim como, uma apreensão do simbólico por parte do historiador, tem sido pontos fundamentais nesse novo saber e fazer histórico. Temas como o medo, o corpo, a morte, a loucura, o clima, a feminilidade, entre outros, tem sido objetos de estudo desse novo historiador, o que na perspectiva da história tradicional era algo praticamente impensável. Todos estes aspectos da vida humana passam a ter uma nova dimensão, ou seja, a perspectiva cultural. Nesse sentido assinala Burke (1996, p.11):

“O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma 'construção cultural', sujeita a variações, tanto no tempo como no espaço [...]. A base filosófica da nova história é a idéia de que a realidade é social ou culturalmente constituída. O compartilhar dessa idéia, ou sua suposição, por muitos historiadores sociais e antropólogos sociais ajuda a explicar a recente convergência entre essas duas disciplinas”.

Um outro ponto que os novos historiadores e antropólogos culturais parecem convergir é com relação à questão do simbólico. O diálogo da história com a antropologia se dá muito em torno da apreensão do simbólico. Como no dizer de Geovanni Levi: "O historiador não está simplesmente preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em definir as ambigüidades do mundo simbólico" (ARANHA, 1997, p.49).
Historiadores como Carlo Ginzburg e Robert Darnton, em seus trabalhos, buscam uma aproximação vantajosa com a antropologia, principalmente com uma “antropologia estrutural simbólica”. Só para citar alguns: “História Noturna: decifrando o sabá”, de Ginzburg. “O grande massacre dos gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa”, de Darnton.
É importante ressaltar que esse diálogo com a antropologia não quer dizer que o historiador perca sua identidade, mas tão-somente utilize a disciplina vizinha para resolver questões que os métodos da história não possuem, como, por exemplo, valorizar o que os antropólogos chamam de “a visão do nativo”, para a partir daí entender os significados implícitos na sua visão de mundo, assim como, a busca por formas simbólicas análogas em sociedades diferente no tempo e no espaço, etc. Portanto, ao historiador cabe agir de forma interdisciplinar, sem, contudo, perder de vista sua perspectiva histórica e resolver historicamente aquilo em que a antropologia não pode avançar, ou seja, analisar a história a partir de uma visão antropológica sim, porém, a partir de uma adesão crítica.

Referências


ARANHA, Gervácio Batista. A nova história, seus temas e métodos: um diálogo com a Antropologia. Revista Raízes. Nº 14, 1997, p. 45-81.

________. A história renovada: a emergência de novos paradigmas. Revista Saeculum. Nº 4/5, 1998/1999, p. 41-72.

BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1996.

________. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1997.

________. Variedade de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourett: mídia, cultura e debates. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1979.

________. et al. A nova história. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=980

ANTROPOLOGIA: FILOSOFIA E CIÊNCIA

De modo geral "antropologia" designa o conjunto, das ciências humanas, procurando abranger o fenômeno humano o mais globalmente possível, no conjunto das manifestações. Toda ciência é de certo modo antropologia. Não há ciência pelo homem que não seja ciência do homem, reveladora do homem. Fazer ciência é um certo modo de ser homem.

A antropologia tem dupla ambição: a de ser uma ciência e ao mesmo tempo a ambição de abranger a totalidade do humano, ou todas as manifestações do humano. Esta dupla ambição situa-se na mitologia científica do séc. XX. O prestígio das ciências aumenta sem cessar por entre os protestos do homem que as fez nascer e desenvolver. O homem sente-se atraído por esta nova manifestação do, sagrado". Como diante do sagrado, o homem tem um duplo sentimento diante da ciência: atração e terror. O cientista acometido pelo mal "filosofia" troca seus escrúpulos com o filósofo que sofre de ,,rigor científico". De um lado, um (pseudo) filósofo que sonha com uma filosofia tecnicista e, de outro, o cientista (pretensioso) que se atribui, sem qualquer sombra de vergonha, o poder de tudo explicar. Estamos diante de um duplo perigo fatal: o de o filósofo fazer má ciência e de o cientista fazer péssima filosofia.

Este clima atinge também a antropologia como estudo do humano. Ela se ressente desta má ambigüidade que provoca a dupla ambição refletida no paradoxo de que se falou há pouco: ambição de uma objetividade científica confundida com a ambição da perspectiva da totalidade do saber sobre o homem.

A temática da explicação e da compreensão encerra-se no âmbito da questão do subjetivo e do objetivo no esforço do conhecimento da condição humana. Ambas, explicação e compreensão não têm sucesso se cada um desses procedimentos tentar exaurir a totalidade do conhecimento humano. Devem, ao contrário, complementar-se. Posso, todos concordam, ser estudado pelo biólogo, ou pelo psicólogo, em meu organismo biológico ou em meu psiquismo. No entanto, tentar reduzir-me a mero "objeto" pela ciência ou pela técnica, significa para mim uma violência, quase uma profanação daquilo que ,em mim , rejeita qualquer redução a mero objeto, minha subjetividade, a plena consciência de meu eu corporal, volitivo, imaginativo, emotivo, moral. Assim, como afirma Barbotin, "ao mesmo tempo em que me ofereço à ciência como objeto, eu me furto às suas garras à título de sujeito e a proíbo, portanto -- cúmulo do paradoxo -- de ignorar como tal: o biólogo não tem o direito sobre meu corpo como ele faz com a planta ou com o animal. Em termos simples, pode-se dizer que a objetividade pretende opor-se ao imperialismo do sujeito, de seus desejos e fantasias, reduzido a um “eu” transcendental. O cientista esforça-se por submeter-se aos fatos, à realidade sem intervir nela ou modificá-la. Mas será isso possível? Parece que às vezes confunde-se esclarecer e interpretar com violentar.

A objetividade começa pela intenção do sujeito, do indivíduo em ser objetivo, sendo portanto uma qualidade do sujeito. A objetividade poderia então ser definida pela intenção de objetividade, vale dizer, de submeter-se aos fatos, a um método, ao controle dos outros e finalmente ao confronto dos outros cientistas, outras teorias, etc.. Tal intenção se verifica pela elaboração de um conjunto coerente e sistemático de procedimentos próprios à verificação, à crítica e à confrontação. O .controle pelos fatos e pelo outro representa os dois pólos da racionalidade científica, cuja preocupação se define por um apelo à razão, isto é, em "dar razão" de seus caminhos e perspectivas.

Compreendida como conjunto de manobras de aproximação antes de ser algo adquirido, esta objetividade aproximativa que caracteriza as ciências humanas levanta uma dificuldade responsável pela ambigüidade da antropologia. Trata-se de saber se a objetividade, definida em termos gerais como a intenção mais ou menos realizada (pois a implicação do observado faz parte dos coeficientes de incerteza), como perspectiva de confrontação com a realidade e com a perspectiva do outro, é possível e em que condições, em uma antropologia entendida como discurso voltado para o homem como sujeito e suas relações intersubjetivas, p.ex. É uma dificuldade real. Que sentido tem a objetividade científica para um discurso que toma como objeto o próprio sujeito que o elabora? Não parece contraditória esta idéia de objetividade aplicada à investigação do humano uma vez que sujeito e objeto se confundem de certo modo? Vejamos. A submissão ao real e ao confronto com o outro implica em uma colocação à distância, uma perspectivação que fazem deste dado real um objeto (objectum=posto diante de). O fato observado, o dado a ser observado encontra-se diante do observador. Agora pode-se perguntar: como pode o sujeito, em sua condição de existente (com toda a densidade ontológica e emocional que o acompanha) ser colocado "diante de", em face de, sem que se desvirtue sua natureza de sujeito. O sujeito humano como centro de interesse do saber, ou melhor, na qualidade de questionador não parece rebelde a uma objetividade, a um método científico? Em outros termos, pode-se ser objetivo em um sentido (submisso ao real, ao confronto, ao controle intersubjetivo) sem ser objetivo em outro sentido "objetificador"? Tornando-se "objeto" da ciência o homem não deixaria de ser sujeito? Não abandonamos, em nome da objetividade, aquilo mesmo que tentamos conquistar. A saber, o sentido do sujeito e de suas relações com o outro, com o mundo na história?

O empreendimento das ciências humanas em seu esforço de conhecer o homem unicamente pela explicação corre o risco de se tornar um pensamento operatório". "0 pensamento operatório, afirma Merleau-Ponty (l975), torna-se uma espécie de artificialismo absoluto, como se vê na ideologia cibernética, onde as criações humanas são derivadas de um processo natural de informação, porém concebido, por sua vez, segundo o modelo de máquinas humanas. Se este gênero de pensamento toma a seu cargo o Homem e a História, e se, fingindo ignorar o que deles sabemos por contato e por posição, empreende construí-los a partir de alguns indícios abstratos, como fizeram nos USA uma psicanálise e um culturalismo decadentes, visto que o homem se torna verdadeiramente o manipulandum que ele pensa ser, entra-se num regime de cultura onde já não há verdadeiro ou falso no tocante ao Homem e à História, num sono, num pesadelo do qual nada poderia acordá-lo. " (p. 276).

A antropologia empreende a sua tarefa como busca de sentido. Enquanto as ciências descrevem a realidade humana, a filosofia do homem reflete (busca interpretativa, hermenêutica) sobre o que o homem pode fazer com essa realidade. As ciências desvelam, mostram os condicionamentos de ordem social, psicológica, econômica ou política, que atuam sobre o homem. A filosofia mostra como o homem assume - liberdade - estes condicionamentos e nesta assunção dá sentido à sua existência. (Canclini, 1987).

Após a configuração do homem pelas ciências humanas, em suas diversas perspectivas, resta ainda algo de irredutível? Há alguma especificidade no homem na condição humana após o olhar da ciência? As ciências ao fim de sua tarefa, ao explicar o homem, ao colocá-lo em perspectivas, ao objetivá-lo, provoca alguma desfiguração ou alguma deformação?

Por outro lado, o pensamento filosófico, objetivado em diversas concepções ou correntes teóricas, através da história, não se exime inteiramente das críticas de reducionismo que são endereçadas às ciências humanas. O idealismo, de todos os matizes, reduzindo o sujeito humano ao Cogito, o positivismo encerrando-o em condições empíricas de sua atividade prática, a psicanálise freudiana, restringindo-o a um nó de pulsões, o marxismo reduzindo-o a um conjunto de relações sociais e econômicas, o estruturalismo negando autonomia ao sujeito, transformando-o em mero elemento de um sistema opressor e despersonalizante: eis quantos reducionismos.

Estas duas tentativas - a ciência e a filosofia -- ambas antropologia - relacionam-se dialeticamente num processo de mútua fecundação. Limitar-se a uma análise científica significa contentar-se com uma visão estática do humano - o homem como ele é. A filosofia tem sua importância para a realização do homem na medida em que não aborda o homem somente naquilo que ele é, mas no que ele pode ser (projeto). De novo nos acolhe a questão: o que vamos fazer do homem? Ser e poder-ser se vinculam. O poder-ser não denota uma saída alienante, como se o homem se lançasse, se projetasse para algo que nada tem a ver com sua condição, algo transcendente de modo absoluto. A emergência do existir é uma tarefa pela qual identificamos a realização do homem: este se esforça em ser nada menos que homem (“qui fait l’ange fait la bête), em descobrir a cada instante o ponto de articulação entre os seus limites e suas potencialidades ou possibilidades. Ele está diante de um equilíbrio tenso.

Cabe à reflexão filosófica a tarefa de compreensão da condição humana. O esforço se remeterá ao solo primeiro de onde o pensamento emerge e busca seus marcos de orientação, a saber, os eventos da experiência concreta, vivida. Esta como evento, fluxo de eventos, e fonte de significação, é um acontecimento significante. Tais eventos são cheios de sentido que se manifesta, se expressa na linguagem do cotidiano, no nível dos gestos, no momento principal do específico humano -- corpo - consciência. Estas objetivações de linguagem estampam o homem "dizendo-se" nas suas relações com o mundo e com os outros.

Ter como mira de esforço compreensivo os eventos, as experiências da vida cotidiana, implica na necessidade de se encarar, em complexidade o próprio dado humano, a condição humana. Encarar em complexidade significa evitar as alternativas. Como disse acima, explicação e compreensão, ciências humanas e filosofia articulam-se dialeticamente em fertilização mútua no empreendimento comum de conhecimentos da condição humana.

Tal tarefa é infinda, não se esgota, já que, sendo o homem histórico este ponto de articulação está sempre se modificando. Pela perspectiva da totalidade a reflexão empreendida pelo filósofo supera ou tenta pelo menos, superar -- no sentido de recuperar unificando e mostrando um sentido (significação e orientação)) desta unidade ou totalidade -- os obstáculos e os desvios causados pela perspectiva da “alternativa” - Ciências Humanas ou Filosofia - e mostrar as chances de uma visão em complexidade onde ambas Ciências Humanas e Filosofia se dialogam.

© 2007 - Produzido por Profª. Ms. Cléa Gois e Silva
http://www.mundodosfilosofos.com.br/antropologia-filosofia-e-ciencia.htm