quinta-feira, 16 de junho de 2011

TEORIAS ANTROPOLÓGICAS DA RELIGIÃO

Stewart E. Guthrie
Universidade de Fordham
Tradução de Desidério Murcho

I. Introdução
Há uma diversidade de teorias antropológicas da religião. Baseiam-se ora em ideias de estruturas humanas sociais, emoções ou cognição. A maior parte concentra-se numa delas, mas algumas combinam mais de uma. Algumas olham para lá da natureza humana, para os outros animais, procurando análogos ou precursores da religião. Algumas teorias são próprias da antropologia, mas muitas foram tomadas de empréstimo. Assim, qualquer exame tem de ser também abrangente e de incluir material que não seja apenas antropológico. Ofereço aqui uma breve panorâmica histórica e um olhar sobre uma promissora abordagem contemporânea.

Nenhuma descontinuidade forte ou qualquer característica única distingue as explicações antropológicas da religião das suas antepassadas ou das explicações de outras disciplinas. Contudo, algumas características comuns tendem a agrupá-las separadamente. Destas, são centrais o humanismo, evolucionismo e comparações interculturais. O humanismo na antropologia quer simplesmente dizer que as explicações da religião (como os outros aspectos do pensamento e acção humanas) são seculares e naturalistas. Explicam as religiões como produtos da cultura e natureza humanas, e não como manifestações de algo transcendental, sobrenatural ou sui generis em qualquer aspecto.

O evolucionismo darwinista — a perspectiva de que todas as formas de vida são produtos da selecção natural — é também básico na antropologia, distinguindo-a de algum modo de outras disciplinas que estudam a religião. O evolucionismo não é surpreendente, é claro, na antropologia biológica, uma das suas grandes subdisciplinas. Mas mesmo na antropologia cultural, fundada pouco depois de Darwin, a selecção natural é fundacional. Na verdade, o evolucionismo cultural foi a "perspectiva com a qual a antropologia veio à vida" (Carneiro 2003: 287). Parcialmente em consequência disso, uma procura das origens e tendências de longo prazo caracterizou a disciplina desde o seu início e persiste ainda hoje. Uma dessas tendências de longo prazo, por exemplo, é as sociedades estratificadas, ao contrário das que não o são, atribuírem os seus sistemas morais a mandatos religiosos. Outra consequência parcial do evolucionismo é um certo apoio ostensivo do funcionalismo, a explicação das características dos organismos e das sociedades pelos seus efeitos positivos. Assim, explica-se por vezes a religião, por exemplo, pela coesão social que lhe é atribuída.

A terceira e última característica principal da teoria antropológica da religião é a comparação intercultural. Apesar de o método comparativo não ter origem na antropologia, tornou-se aí especialmente importante. Da perspectiva intercultural, o objecto de estudo último não é a religião em qualquer lugar ou momento do tempo particular, mas a religião em todo o lado e em qualquer momento do tempo.1 Tal estudo revela uma tal gama de crenças e práticas que quase exclui qualquer denominador comum (Saler 2000 [1993]). A diversidade parece excluir o ecumenismo, assim como qualquer "filosofia perene" comum (Huxley 1990 [1945]).

Assim, as questões de definição ganham proeminência. Estas questões são difíceis mesmo para os estudiosos que pertencem às poucas sociedades, relativamente semelhantes, que integram antropólogos. Quando tentamos comparar as religiões globalmente, a definição torna-se simultaneamente central e intimidadora. É defensável que esta situação desenvolva o humanismo, do mesmo modo que as notícias sobre religiões não ocidentais desenvolveu o iluminismo. Logo, estas três características da antropologia reforçam-se entre si.

Dada a grande diversidade de pensamentos e acções a que se chama religião, e dado que as linguagens não têm, na sua maior parte, palavra para tal coisa, levanta-se a questão de saber se a religião é universal. A resposta depende, é claro, da nossa definição. Quanto mais abstracta for a definição, mais difundido será aquilo que é definido. Se aceitarmos uma definição tão abstracta como a de Tillich (1948: 63), segundo a qual a religião é um comprometimento com um "cuidado último," então presumivelmente as pessoas são religiosas em todo o lado, dado todas considerarem que um dado cuidado é mais importante do que outros. Se, contudo, se estipula a crença em Deus, juntamente com a moralidade sancionada por uma vida depois da morte, então os religiosos constituem um grupo menor. Em qualquer caso, os antropólogos pensam, na sua maior parte, que a religião pode ser definida de modo tão amplo que seja virtualmente universal (Rappaport 1999; Crapo 2001; Atran 2002: 264).

2. Uma breve história
É útil dividir as teorias antropológicas da religião em três grupos: teorias da solidariedade social (ou da coesão social), teorias do sonhar alto e teorias intelectualistas (ou cognitivistas). As teorias da solidariedade social tomam as necessidades da sociedade como primárias e explicam a religião em termos do modo como esta as satisfaz, especialmente pela sua suposta promoção da harmonia e coesão. As teorias do sonhar alto tomam como primárias as emoções dos indivíduos e explicam a religião em termos do mitigar de sentimentos negativos, como o medo e a solidão, e da promoção da confiança ou da serenidade. Por fim, as teorias intelectualistas tomam como primária a necessidade humana de compreender o mundo. Desta perspectiva, a interpretação religiosa do mundo é, antes de tudo e principalmente, uma tentativa de compreensão. Cada uma destas teorias pode ser combinada com qualquer das outras duas, ou com ambas.

A teoria da segurança social tem sido a abordagem principal na antropologia desde a fundação desta última nos finais do séc. XIX. É uma forma de funcionalismo, dado explicar a religião pelo incutir nominal de fidelidade a uma sociedade. A religião consegue-o por meios simbólicos, usando roupas especiais, arquitectura, canto, dança e fórmulas verbais para aumentar sentimentos comunais. Na verdade, chama-se por vezes simbolismo à teoria da solidariedade social, querendo dizer que sustenta que a religião é uma actividade inteiramente simbólica que não se envolve com o mundo como um todo (como os seus executantes ou observadores poderiam pensar), mas apenas com as relações sociais humanas. Os seus símbolos podem estar ocultos e ser apreendidos apenas inconscientemente.

Que o simbolismo religioso unifica a sociedade não é uma ideia nova. Na Ásia oriental, por exemplo, o uso da religião pelo estado remonta pelo menos a 1027 a.C., quando a nova dinastia Chou citou a sua conquista dos povos subjugados como um sinal de que tinha recebido o mandato do Céu. As dinastias posteriores continuaram a fazer a mesma afirmação. Além disso, integraram Confúcio como uma figura quase religiosa que apoiava o estado, como fizeram os governos do Japão e da Coreia. No Japão tanto o culto de Shinto como o dos antepassados servia a unidade nacional. No ocidente ocorreu o mesmo: a perspectiva (e uso) da religião como forma de solidariedade social surgiu cedo e tem persistido. Começando pelo menos com Políbio, no séc. I a.C., e seguido por Bodin, Vico, Comte (Preus 1987) e Freud (e.g., 1964 [1927]), entre outros, e mais recentemente Wilson (2002) e Roes e Raymond (2003), muitos estudiosos sustentaram que a religião mantém a ordem social.

A teoria da coesão social, contudo, deve muito a Durkheim (1965 [1915]), que procurava saber como as sociedades mantêm a coesão. Afirmou que o conseguem em grande medida por meio da religião, que inclui crenças e práticas que são "relativas às coisas sagradas" e que organizam os seguidores em grupos de solidariedade. As coisas sagradas não têm de incluir deuses (o budismo, escreve Durkheim, é uma religião sem deuses): são seja o que for que represente os elementos essenciais da sociedade. As coisas profanas, pelo contrário, constituem uma categoria residual de tudo o que não é sagrado. A distinção feita pela religião entre o sagrado e o profano é o seu sinal característico.

Baseando-se em etnógrafos da religião aborígene australiana, Durkheim concluiu que o objecto principal de culto dos membros dos clãs australianos, o "totem," representa na verdade o próprio clã, e que é o clã que é sagrado. O mesmo princípio se aplica nas sociedades modernas complexas. O objecto explícito de culto, seja um totem, uma bandeira ou Deus, representa tudo o que é vital é portanto sagrado na sociedade. Ao formular e exprimir o sentimento de dependência mútua dos membros de uma sociedade, sentimento que de outro modo é apenas esporádico, a religião consolida-o e aumenta-o. Isto ajuda a fazer os membros comportar-se eticamente relativamente aos seus semelhantes e arregimenta-os em defesa da sociedade.

A teoria da solidariedade social tem vários pontos fortes, sobretudo o facto de as religiões parecerem muitas vezes ter produzido solidariedade (Wilson 2002) e de os líderes de várias sociedades terem usado esta capacidade. Contudo, a teoria tem também pontos fracos. A tese de Durkheim de que a característica central da religião é a sua dicotomia entre sagrado e profano, por exemplo, foi imediatamente alvo de objecções de etnógrafos que relataram que nas culturas que estudaram não encontraram tal distinção (Guthrie 1996).

Outro problema é que se a tese de que as religiões unem as sociedades é mais do que a tautologia de que as religiões unem os seus membros, então é preciso mostrar que as religiões emergem de grupos que têm outra base qualquer, que depois a religião fortalece. Mas na verdade há muitos tipos de grupos — famílias, aldeias, comunidades étnicas, estados — que a religião divide em vez de unir. Um corolário é que ao passo que os grupos sociais são alegadamente preservados pela religião, muitos têm ao invés sido destruídos por ela. Exemplos disso são os T'ai-p'ing Tao da China do séc. II a.C. e o Templo do Povo de Jonestown.

Por fim, é preciso responder a um problema de todo o funcionalismo: por que se adopta a característica em causa (a religião) no sistema em causa (uma sociedade) que dela beneficia? Os funcionalistas ignoram muitas vezes esta questão ou parecem tacitamente sancionar algo como uma explicação darwinista: as sociedades com um dado traço têm mais sucesso e portanto sobrevivem mais ou espalham-se mais. O traço sobrevive com elas.

A questão mais básica de como surgem os traços também é habitualmente ignorada. Pode-se conjecturar que surgem aleatoriamente, seguindo o modelo da mutação genética. A aleatoriedade, contudo, apesar de adequada para descrever mutações, é uma explicação empobrecida da origem de uma cultura. Sabe-se demasiado sobre os processos mentais humanos para os entregar ao acaso cego.

Além disso, os traços culturais, ao contrário dos genéticos, não são transmitidos biologicamente, tendo de ser aprendidos e muitas vezes também activamente ensinados. Logo, levanta-se a pergunta: o que motiva as pessoas a ensinar ou a aprender doutrinas ou comportamentos particulares? Esta pergunta torna-se mais aguda pelo facto de as pessoas que o fazem parecerem muitas vezes não estar cientes dos benefícios sociais atribuídos pelo observador. No caso da religião, por exemplo, poucas pessoas afirmam que rezam porque isso torna a sociedade mais coesa.

O facto de o funcionalismo vis-à-vis a religião (e a outras características das sociedades e dos organismos) persistir deve-se, talvez, não à sua plausibilidade sob análise mas por exercer uma certa atracção intuitiva mas enganadora. A atracção é que o funcionalismo zomba da propensão humana, de que nos apercebemos pelo menos desde Hume (1957 [1757]) e que foi pormenorizada experimentalmente por Kelemen (2004), para encontrar desígnio e propósito no mundo em geral. Esta propensão, mostra Kelemen, emerge espontaneamente nas crianças desde muito novas ("as nuvens existem para haver chuva") e permanece poderosa durante toda a vida. Kelemen mostra que esta tendência assume prontamente uma forma religiosa. Alguns religiosos actuais particularmente fervorosos, por exemplo, crêem ver um "desígnio inteligente" que rivaliza o evolucionismo como explicação científica da biologia. Contudo, esta crença parece revelar mais sobre as susceptibilidades perceptivas humanas do que sobre a biologia.

Assim, a teoria da coesão social de Durkheim e de outros não parece resistir às objecções a um conceito nuclear (a distinção sagrado-profano), aos contra-exemplos nos quais a religião não é um factor de coesão mas de dispersão, e por fim não consegue fornecer uma dinâmica credível da génese e transmissão da religião. Apesar de a religião muitas vezes unir os grupos e poder ser deliberadamente usada para esse propósito, não é por essa razão que as pessoas a adoptam. Além disso, a religião também separa muitas vezes os grupos.

A uma segunda colecção de teorias pode-se chamar a abordagem do sonhar alto. Segundo estas teorias, a religião serve de paliativo para a ansiedade e descontentamento humanos, imaginando uma condição mais satisfatória, seja no presente, seja no futuro. Ao postular um mundo no qual podemos melhorar-nos apelando a deuses, ou no qual o sofrimento da vida será compensado por uma vida melhor por vir, a religião torna a vida suportável.

Estas teorias têm também uma linhagem antiga. Vários autores têm observado que a religiosidade está correlacionada com a ansiedade, pelo menos desde a observação de Eurípides de que a tensão nos conduz, devido à "nossa ignorância e incerteza," a prestar culto aos deuses (Hécuba 956, in Hume1957 [1757]: 31). Analogamente, Diodoro Sículo escreveu que o desastre nos disciplina, fazendo-nos ter "reverência pelos deuses" (Hume 1957 [1757]: 31). Espinosa (1955), Feuerbach (1957 [1873]), Marx (Marx e Engels 1957: 37-38), e os antropólogos do séc. XX Malinowski (1955 [1925]) e Kluckhohn (1942) fizeram observações comparáveis.

O defensor da teoria do sonhar alto mais amplamente lido, contudo, é sem dúvida Freud (e.g., 1964 [1927]). Antropólogos que seguem Freud incluem Kardiner e Linton (1945), Spiro (1966), Wallace (1966) e La Barre (1972). Como Freud é discutido noutro capítulo deste volume (por Beit-Hallahmi), descreverei as suas ideias apenas brevemente. Para Freud, as religiões são delusões, "nascidas da necessidade de o homem tornar o seu desamparo tolerável" e são "ilusões, realizações dos desejos mais antigos, fortes e urgentes da humanidade" (1964: 25 e 47). As suas características particulares são "projecções" de emoções e experiências.

A noção de projecção, contudo, é uma metáfora enganadora, provavelmente baseada numa teoria popular da visão como toque (Guthrie 2000b). Entre outros problemas, implica que há dois tipos de percepção: projecção, que é subjectiva e falaciosa, e percepção improjectiva, que é objectiva e precisa. Esta implicação é contradita pelo facto de toda a percepção reflectir os interesses do agente perceptivo, não havendo um ponto de vista neutro.

Muitas religiões, além disso, não se adequam bem a qualquer teoria da realização dos desejos por terem características que é improvável que alguém deseje. As divindades de algumas são cruéis ou coléricas, e têm muitas vezes como complemento demónios ou fantasmas assustadores. Noutras, a vida depois da morte ou não existe ou é efémera, ou é um Hades ou outro lugar desagradável. Tais religiões podem ser tão ameaçadoras quanto promissoras. Como um antropólogo comentou (Radcliffe-Brown 1979 [1939]: 55), poder-se-ia igualmente sustentar que as religiões provocam "medos e ansiedades que de outro modo não existiriam."

Mesmo que no cômputo geral as ideias religiosas pendam para o conforto e não para a aflição, seria necessário explicar o que as torna credíveis. Não parece que acreditamos simplesmente no que nos poderia confortar. Como Pinker (1997: 555) faz notar, opondo-se à teoria do conforto, as pessoas que estão a morrer de frio não parecem confortar-se a si mesmas com o pensamento de que na verdade estão quentes.

Ao terceiro grupo de teorias chama-se intelectualismo, cognitivismo ou (por vezes) neo-tylorianismo. Estas defendem que a religião é primariamente uma tentativa de entender o mundo e de agir de acordo com esse entendimento. Uma dessas teorias, a de Tylor (1871), era a mais importante das primeiras teorias antropológicas da religião. Tylor, que é um humanista clássico, evolucionista e comparativo, descreve a religião como uma tentativa universal de explicar certas experiências humanas enigmáticas.

A teoria de Tylor, como acontece com as teorias anteriores da solidariedade social e do sonhar alto, tem predecessores. O seu comparativismo e aparentemente o seu humanismo recuam a Xenófanes (séc. VI a.C.), cujos fragmentos relatam que os seres humanos formam os seus vários deuses às suas diferentes imagens (Freeman 1966: 22). Os etíopes, por exemplo, fazem os seus deuses negros, ao passo que os trácios lhes dão cabelo vermelho. Muito depois, Espinosa (1955) e Hume (1957 [1757]), a que Tylor atribui a formação da opinião moderna sobre a religião, anteciparam melhor Tylor ao escrever que a religião popular, pelo menos, consiste em atribuir características humanas ao mundo inumano, para interpretar o que nos rodeia e que de outro modo seria enigmático.

Tylor acrescentou a estas ideias mais antigas uma ênfase na evolução cultural que, combinada com um comparativismo mais abrangente, reforçou a perspectiva naturalista da religião como mais um produto da actividade mental humana. Como comparativista, baseou-se sistematicamente nos relatos de viajantes, administradores, missionários e primeiros etnógrafos para ter descrições de crenças e práticas por todo o mundo, para encontrar um denominador comum das religiões. Via as diferenças culturais, incluindo religiosas, como um reflexo não da genética mas de formas de sociedade, dado que uma "unidade psíquica" de processos mentais comuns existe em todos os seres humanos. Estas ênfases tornaram-se parte do cânone antropológico.

Tylor concluiu que a religião se pode definir como animismo, uma crença em seres espirituais, e que esta crença emerge universalmente de duas experiências: sonhos e a morte de outras pessoas. Os sonhos são interpretados em todo o lado, afirmou, como visitas do que é objecto do sonho (Tylor chamou "fantasma" ao visitante). A morte, em contraste, é em quase todo o lado concebida como a partida de algo (a "vida"). O fantasma e a vida são então concebidos como uma só coisa, o "espírito." Isto é uma

imagem humana diáfana e insubstancial, sendo por natureza um género de vapor, película ou sombra; a causa da vida e do pensamento no indivíduo que anima; possuindo independentemente a consciência pessoal e a volição do seu dono corpóreo, do passado ou do presente; capaz de deixar o corpo para trás, de fulgurar subitamente de lugar para lugar; sendo na sua maior parte impalpável e invisível, manifesta contudo também poder físico, aparecendo especialmente aos homens, acordados ou a dormir, como um fantasma. (1979: 12)

Os críticos rapidamente acusaram Tylor de contar uma "história assim,"2 com poucos indícios a favor quer da ideia de que as noções de fantasma e vida surgiam como Tylor afirmava quer de que a noção de ser espiritual tem origem na sua conjunção. Apesar das suas fontes etnográficas abrangentes, os seus indícios a favor de tal origem parecem realmente circunstanciais. Foi também acusado, talvez justificadamente, de transformar as pessoas comuns em filósofos preocupados com a explicação e de ter negligenciado a emoção. Outros críticos ainda notaram que apesar de Tylor ter como pressuposto central a ideia de que os deuses são seres espirituais e portanto insubstanciais, na verdade as divindades de algumas religiões são corpóreas e substanciais — por exemplo, o Deus do cristianismo primitivo (Teske 1986).

A tese de Tylor sobre os sonhos e a morte e a sua ênfase na religião como cognição foram adoptadas por outros antropólogos por algum tempo, mas depois largamente abandonadas. O seu termo "animismo" sobreviveu, apesar de o significado ter mudado um pouco. Ao passo que Tylor tinha em mente uma crença em quaisquer seres espirituais, incluindo deuses monoteístas, hoje em dia tem-se em mente a crença em múltiplos espíritos. A doutrina de Tylor da unidade psíquica da humanidade também sobreviveu. A sua perspectiva de que a religião deve ser entendida como cognição, além disso, reapareceu nos anos sessenta do séc. XX com Robin Horton e uma vez mais depois de 1980 até hoje, na obra de muitos autores que se baseiam nas ciências cognitivas.

Horton, um antropólogo do povo calabar do Níger, estudioso da religião e da sua relação com o restante pensamento, oferece uma explicação intelectualista cuidadosa da religião (1960, 1967, 1973, 1982, 1993), sublinhando as suas semelhanças e continuidades com a ciência. Uma publicação antiga (1960: 211), seguindo a sugestão de Tylor de que as divindades se assemelham a seres humanos, define a religião como o "alargamento do campo das relações sociais das pessoas para lá dos limites da sociedade puramente humana." Isto é, as pessoas tomam aspectos do mundo inumano como se fossem significativamente como o mundo humano e igualmente capazes de relações sociais.

Subsequentemente, Horton argumentou (e.g., 1967) que o pensamento e acção religiosos não são fortemente diferentes do pensamento e acção científicos. Ambos são esquemas teóricos de "segunda ordem," afastados das teorias de primeira ordem do senso comum. O objectivo central de ambos é unificar a experiência reduzindo a complexidade e a desordem à ordem e à simplicidade; e ambos funcionam em termos de analogia e metáfora. O facto de a religião entender o mundo por analogia com os seres humanos, ao passo que a ciência evita isto mesmo, é superficial e uma mera diferença de linguagem.

Horton é influente como pioneiro do que hoje se chama a abordagem cognitiva da religião, apesar de se basear mais na filosofia da ciência e em trabalho de campo do que nas ciências cognitivas. A psicologia cognitiva recente e outras investigações relacionadas aprofundam e modificam o seu trabalho sublinhando processos inconscientes, arracionais, e mostrando que a nossa tendência para ver o mundo em termos humanos nem é superficial nem uma mera linguagem, estando antes muito difundida e profundamente enraizada (Lakoff e Johnson 1999; Carey 2000; Heberlein 2004; Kelemen 2004; Hassin, Uleman e Bargh 2005).

Uma figura final nesta breve história é Clifford Geertz, que em certa medida sintetiza os três grupos anteriores. O mais relevante é o seu muito citado ensaio "Religion as a Cultural System." Este ensaio é uma expansão da sua definição alargada de religião como "1) um sistema de símbolos que actua para 2) estabelecer disposições de espírito e motivações poderosas, muito difundidas e de longa duração nos homens, 3) formulando concepções de uma ordem geral da existência e 4) revestindo estas concepções com uma aura de factualidade de modo a que 5) as disposições de espírito e as motivações pareçam singularmente realistas" (1966: 4). Isto define a religião pela sua função, nomeadamente, motivar e inspirar os seus seguidores apresentando um mundo ordenado de significado. Responde a um humano desejo profundo de significado e unifica a sociedade com um sistema simbólico comum, interpretando o mundo como algo que tem uma ordem geral de existência.

Contudo, o ensaio não especifica claramente que tipo de significado oferece a religião, excepto para dizer que é um significado "último," nem explica precisamente por que este significado é convincente. Estas omissões dão à descrição de Geertz uma grande aplicação, mas deixam pouca motivação para a religião enquanto sistema cultural. O silêncio mais importante diz respeito à "ordem geral da existência," que está no coração da definição. O que está envolvido nesta ordem geral — ou quem — para nos encorajar? É-nos apenas dito que as particularidades da ordem são muitíssimo variáveis e, aparentemente, arbitrárias. A ordem permanece, no final de contas, como uma caixa preta (Guthrie 1993: 28-29). Entram na caixa os nossos problemas existenciais, e saem dela senão soluções, pelo menos refrigérios. Não nos é dito como a ordem funciona, mas apenas que fornece o significado de que precisamos.

Tanto o refrigério como o significado, contudo, são fenómenos caracteristicamente humanos. Assim, uma descrição possível, e mais específica, desta ordem geral da existência seria que é criada ou habitada por um ser ou seres humanóides — isto é, por algo como uma divindade ou divindades. Sendo assim, o seu conteúdo não será arbitrário nem infinitamente variável mas, como Tylor e Horton insistiram, terá como modelo as pessoas humanas. Restringindo-o deste modo, o sistema de Geertz seria menos amplo (apesar de ser ainda suficientemente amplo para incluir virtualmente todas as culturas) mas também ficaria numa base psicológica mais sólida.

3. Cognitivismo recente
Mais de um século depois de Tylor dar forma antropológica à perspectiva intelectualista da religião, e quase um século desde que essa forma perdeu a maior parte dos seus seguidores, surgiram novas formas de intelectualismo. Sublinham, na sua maior parte, processos inconscientes (ao passo que Tylor lidava com processos conscientes) e baseiam-se no novo campo das ciências cognitivas, sendo por isso denominadas "cognitivistas." Hoje em dia, estas parecem as teorias mais energéticas.

Os cognitivistas hoje em dia concordam em geral com Tylor e Horton que por religião entendemos algo que inclui relações com seres humanóides, ainda que não sejam humanos. Contudo, as suas teorias podem ser divididas aproximadamente em duas abordagens. Uma sustenta que as ideias religiosas emergem regular e inevitavelmente, porque são intuitivas (Guthrie 1980, 1993, 2002; Burkert 1996; Bering 2002; Kelemen 2004). As ideias intuitivas são produtos de "processos perceptivos e inferenciais espontâneos e inconscientes" (Sperber 1996: 89). Temos essas ideias sem saber porquê, e nem sabemos que as temos. Transmitem-se facilmente porque lembram aspectos que já nos são familiares.

Sobretudo, esta abordagem fornece uma nova explicação dos fenómenos intuitivos mais centrais das ideias religiosas, nomeadamente o animismo e o antropomorfismo. Esta explicação é que constituem descobertas aparentes mas erradas — isto é, falsos positivos — de animais ou pessoas, sendo produtos inevitáveis da nossa procura crónica de agentes importantes num mundo ambíguo. Esta procura por sua vez faz parte de uma estratégia que evoluiu para encontrar as características mais importantes no nosso ambiente perceptivo incerto. A incerteza perceptiva é aprofundada pela dissimulação natural que ocorre sob a forma de camuflagem. Daí que as nossas sensibilidades a possíveis agentes importantes e a traços de agentes (predadores ou presas, amigos ou inimigos) sejam tão facilmente despoletadas, não nos sendo possível evitar pensar muitas vezes que os detectámos quando isso não ocorreu.

A outra abordagem cognitivista é por vezes denominada epidemiologia cultural, pois é a noção (Sperber 1996) de que a cultura se espalha como uma doença. Os seus defensores sustentam que as ideias religiosas só surgem aleatória e esporadicamente, mas que estão muito espalhadas porque são memoráveis e por isso facilmente transmissíveis. São memoráveis porque são "contra-intuitivas" e consequentemente novas (Medin e Atran 1999; Barrett 2000; Boyer 2001; Pyysiäinen 2001).

Boyer (2001) é representativo desta segunda abordagem. Afirma que o seu termo central, "contra-intuitivo," é "técnico" e não "significa estranho [...] excepcional ou extraordinário" mas antes "contradizendo informação fornecida por categorias ontológicas" (2001: 65). Por exemplo, afirma, as categorias animal, pessoa e planta são ontológicas. Estas categorias dizem-nos que os seus membros têm propriedades biológicas distintas: estão vivas, precisam de nutrição, crescem, envelhecem e morrem. As ideias contra-intuitivas, segundo Boyer, incluem seres que não são animais, pessoas ou plantas e que contudo têm uma ou mais destas propriedades biológicas. Incluem também animais, pessoas ou plantas que não têm uma ou mais destas propriedades. Para que sejam mais facilmente recordados, os conceitos devem ser "minimamente contra-intuitivos," ou seja, devem ser familiares em alguns aspectos, mas não noutros. Um fantasma, por exemplo, é um ser humano com desejos, intenções e sentimentos comuns, mas que é também insubstancial.

Parece haver vários problemas nesta explicação. A mais importante é que o significado de "contra-intuitivo" não é claro. Boyer escreve que o seu sentido comum é enganador e que o "neologismo contra-ontológico poderá ser uma escolha melhor" (2001: 65). Como vimos, Boyer define contra-intuitivo como o que contradiz categorias ontológicas misturando as suas propriedades, em particular as de seres animados e inanimados. Contudo, as próprias categorias a que chama ontológicas e intuitivas, especialmente as biológicas, são controversas. Alguns investigadores (Carey 1985, 1995, 2000; Cherry 1992; Johnson e Carey 1998) afirmam que a biologia é aprendida, e não intuitiva. Até se resolver esta questão, não saberemos se os conceitos religiosos violam categorias ontológicas, sejam como for que as definamos.

Além disso, porque Boyer não define claramente o termo "categorias ontológicas," a sua definição de contra-intuitivo em termos dessas categorias é circular. Poder-se-á pensar que as categorias ontológicas têm uma qualquer base independente na ciência ou na natureza, mas Boyer afirma que não são "sempre verdadeiras ou exactas [...] São apenas o que intuitivamente esperamos, e nada mais" (2001: 68). Assim, as categorias ontológicas são definidas como as categorias, sejam elas quais forem, que são intuitivas, e o contra-intuitivo é definido como o que entra em conflito com elas. Mais tarde, Boyer e Barrett (2005) escrevem que as categorias ontológicas "intuitivas" diferem das categorias ontológicas "reais," mas os seus critérios permanecem pouco claros.

Os epidemiologistas caracterizam também o sobrenatural como contra-intuitivo e fazem dele a marca da religião. Mas a própria noção de sobrenatural é ocidental e uma vez mais controversa (Lohmann 2003). (Para confundir ainda mais as coisas, Boyer escreve noutro lado (2001: 158-59) que representamos intuitivamente agentes sobrenaturais.) Apesar de os epidemiologistas afirmarem que explicam a religião explicando o que a torna memorável, uma abordagem mais parcimoniosa da memória seria a teoria da informação. Esta sustenta simplesmente que um acontecimento é memorável na medida em que não for usual, tornando assim controversa a questão problemática do que é ou não é contra-intuitivo.

Um último problema com a teoria epidemiológica da religião é que é inconsistente com a evolução darwinista. Segundo Darwin, as características principais dos organismos, incluindo a percepção e a cognição, são seleccionadas devido à sua utilidade. Assim, a percepção e a cognição evoluíram para fornecer informação útil — ou seja, informação verídica que responde a necessidades específicas. Os epidemiologistas culturais, pelo contrário, afirmam que a mente humana evoluiu de modo a favorecer informação paradoxal e falsa ("contrafactual," afirmam). Alguns indícios, além do exemplo hipotético da religião, são necessários para o afirmar, e é necessário explicar esta estranha reviravolta evolutiva. A navalha de Occam recomenda que procuremos ao invés uma explicação mais económica da religião.

Tal explicação é oferecida pela primeira abordagem cognitivista mencionada. Esta abordagem sustenta que as ideias religiosas, e especialmente três características conceptuais particulares, estão muito espalhadas porque são intuitivas. As duas primeiras características são sentidos diferentes, mas relacionados, de "animismo": o de conceitos de seres espirituais (seres humanóides que podem ser invisíveis e/ou mais ou menos substanciais) e o de atribuir vida a fenómenos que os biólogos consideram não ter vida. A terceira característica é o antropomorfismo (a atribuição de características humanas a fenómenos inumanos). Estas três características estão ligadas e, numa certa medida, emergem de disposições e processos relacionados. Estão frequentemente presentes na religião, ou sempre.

A crença em seres espirituais que Tylor afirma definir a religião é ainda central para muitos ocidentais. Apesar de alguns deuses, como o Deus cristão primitivo, serem corpóreos e substanciais, muitos outros são invisíveis e mais ou menos insubstanciais. Contudo, a etologia, psicologia e filosofia recentes sugerem que estes seres não são contra-intuitivos para a maior parte das pessoas.

A etologia indica que, como resposta evolutiva ao nosso mundo biológico, somos mais sensíveis ao comportamento (ao movimento espontâneo ou irregular, por exemplo) do que à forma. Daí que sejam secundárias as questões de saber se um ser é corpóreo e como o é. Por exemplo, as crianças muito novas tentam interagir com telemóveis como se estes fossem seres sociais (Carey 1995: 279). Esta flexibilidade com respeito à corporização é reflexo de um mundo real no qual os animais escondem a sua forma de muitas maneiras. A sua aparência, consequentemente, é menos importante do que o modo como agem. Além disso, muitos animais obscurecem a sua localização e a direcção do seu movimento integrando-se, por exemplo, em cardumes ou bandos complexos. Acresce que formas minúsculas de vida como os vírus e as bactérias, têm sido simultaneamente invisíveis e intangíveis ao longo da maior parte da história humana, e no entanto os efeitos que têm em nós foram muitas vezes vistos como efeitos de agentes — demónios, por exemplo. Assim, a percepção inconsciente de agência sem forma ou localização definidas tem uma base na experiência ao longo da evolução humana.

Ademais, uma razão subjectiva para a agência incorpórea ser intuitiva é que concebemos os nossos eus e os eus alheios como imateriais. Um filósofo contemporâneo (Leider 1990) argumenta que na maior parte da autoconsciência o corpo está ausente a menos que tenhamos algum desconforto. Normalmente, a nossa atenção centra-se, ao invés, no nosso ambiente externo. Daí que a experiência normal seja incorpórea.

Além disso, a teoria humana da mente sustenta que as mentes — fenómenos que intuitivamente consideramos da maior importância — são por natureza inobserváveis (Malle 2005: 225). São postuladas por detrás de acontecimentos e não na sua superfície. Alimentado, talvez, "pela nossa profunda estima pela ideia de mente" (Wegner 2005: 22), imaginamos até um controlador invisível por detrás dos processos das nossas próprias mentes. Este controlador é o eu a que Lakoff e Johnson (1999: 268) chamam o "Sujeito," que em diferentes culturas é o "locus da consciência, experiência subjectiva, razão, vontade e a nossa "essência."" As pessoas concebem inconscientemente este Sujeito por todo o lado, sustentam Lakoff e Johnson, como algo imaterial e incorpóreo. Sendo incorpóreo, sobrevive à morte e, em algumas religiões, chama-se "a Alma ou Espírito" (563).

Indícios experimentais recentes indicam também que intuitivamente consideramos os nossos eus mais profundos incorpóreos e imunes à morte. Investigações de psicologia cognitiva (Bering 2002; Bering e Bjorklund 2004) sugerem que as crianças muito novas (e, em grande medida, os adultos) adoptam um modelo de senciência persistente depois da morte porque não têm um modelo de inexistência mental. Usando bonecos para contar às crianças uma história na qual um rato é comido por um aligátor, Bering (2002) descobriu que apesar de as crianças muito novas compreenderem que a morte do rato acabava com a sua capacidade para correr e comer, essas crianças supõem que mesmo assim o rato pode ter fome e ficar triste. Assim, a concepção da mente que estas crianças têm permanece a mesma, apesar de o corpo já não existir. Consequentemente, a sua pressuposição de um funcionamento mental persistente não surge como uma hipótese adicional, mas antes como a ausência de tal hipótese. Bering e Bjorklund concluem que a quase universalidade das crenças na vida depois da morte reflecte "tendências cognitivas inatas" sobre o estado mental de agentes mortos. Assim, muitos tipos de indícios convergem na sugestão de que o animismo, no primeiro sentido, uma crença em agentes humanóides mas incorpóreos, é intuitiva.

Um segundo tipo de animismo, sugerido por Piaget (1929, 1933) e hoje canónico entre psicólogos, é a tendência para "considerar que as coisas estão vivas e são conscientes" (1933: 537), isto é, para atribuir vida senciente a coisas que não têm vida. Indícios de várias fontes sugerem que também neste sentido o animismo é intuitivo (Tiedmann 1927 [1787]; Cherry 1992; Guthrie 1993, 2002). Um tipo de indício será aqui suficiente. Trata-se do nosso grupo multimodal de sensibilidades especiais a características dos nossos meios ambientes que possam revelar a presença de animais complexos, como insectos, peixes, répteis, aves e mamíferos (partilhamos muitas dessas sensibilidades com outros animais). Reagimos automaticamente a características como o movimento espontâneo (Darwin 1871; Heider e Simmel 1944; Michotte 1950; Poulin-Dubois e Heroux 1994), ocelos (Ristau 1998: 141), simetria bilateral (Washburn 1999) e rostos (Johnston 2001), cada um dos quais tendemos a interpretar como um sinal de vida.

A terceira característica conceptual da religião, o antropomorfismo — a atribuição de características humanas a coisas e acontecimentos inumanos — é também aparentemente intuitiva. Os indícios a favor do seu carácter intuitivo incluem a sua enorme diversidade e difusão em vários níveis de percepção e cognição (Cherry 1992; Guthrie 1993, 2002, no prelo; Mitchel, Thomas e Miles 1997; Kelemen 2004).

O animismo e o antropomorfismo são subprodutos de uma atitude cognitiva geral. Esta atitude estratégica (que inclui a atitude intencional) constitui uma boa aposta face à incerteza perceptiva. Presume que alguns fenómenos por identificar — vistas, sons, cheiros, etc. — que podem reflectir a presença de vida, incluindo humana, a incluem de facto. Ou seja, é uma atitude na qual há grande sensibilidade a sinais de vida possíveis, sendo muito baixo o limiar para os aceitar como tal.

Esta estratégia foi o produto da selecção natural (em nós e noutros animais) porque, como argumentei profusamente (1980, 1993, 1996, 1997, 2001, 2002, no prelo), o nosso mundo perceptivo é inerentemente ambíguo e porque quando formas de vida muitíssimo organizadas estão presentes é importante que as detectemos. Além disso, a ambiguidade da percepção é exacerbada pela dissimulação natural, incluindo a camuflagem e o mimetismo. Porque a maior parte dos nossos predadores, presas e pares sociais (incluindo os seres humanos) têm uma grande capacidade evolutiva para se dissimular, é uma boa estratégia presumir que qualquer forma ou som ambíguos que encontremos indica a sua presença.

A informação mais importante que podemos detectar habitualmente é que um animal qualquer — especialmente um ser humano — está por perto. Sob a incerteza perceptiva crónica, o nosso pressuposto inicial é consequentemente que os movimentos irregulares ou espontâneos, as formas semelhantes a rostos ou olhos, os sons novos, as simetrias, o "desígnio" e outros fenómenos salientes são sinais de que um qualquer ser animado está presente. Se presumirmos que um ser animado está presente podemos preparar-nos para fugir, lutar ou cooperar socialmente. Quando é verdade o que presumimos, ganhamos por estar preparados. Quando não é verdade, como tantas vezes acontece, pouco se perde. Retrospectivamente, chamamos animismo ou antropomorfismo a esse engano. Assim, estes enganos não são em si motivados, mas antes os subprodutos de um sistema cognitivo que é motivado. Este sistema evoluiu necessariamente para detectar organismos significativos seja onde for que possam existir.

4. Conclusão
Apesar de mais de um século de antropologia da religião, as suas teorias continuam a ser muito diversificadas e contenciosas. Nas últimas duas décadas, contudo, o cognitivismo voltou a apresentar-se como a orientação teórica principal. Das suas duas subdivisões principais defendi a que considera que o pensamento e acção religiosos são intuitivos.

Deste ponto de vista, o animismo e o antropomorfismo, centrais no pensamento e acção religiosos, não são únicos mas antes subconjuntos do nosso animismo e antropomorfismo gerais. Distinguem-se do conjunto geral apenas pela sua sistematização e gravidade relativas. Nenhuma linha clara distingue as religiões de outros pensamentos e acções. As religiões não foram em si seleccionadas pela evolução, nem constituem um fenómeno unitário. Ao invés, são uma família de efeitos secundários das nossas propensões perceptivas e cognitivas, ligadas entre si pela nossa procura de ordem e significado.

As religiões, como outras formas de animismo e antropomorfismo, podem ter diversos fins. Contudo, esses usos não explicam a sua existência nem garantem que são benéficos. Em última análise, as religiões são produtos do acaso evolutivo: consequências inintencionais de produtos evolutivos prévios. Procurar uma função das religiões, que é a nossa tendência intuitiva, é um aspecto da teleologia. Essa teleologia, que pressupõe que há significado e propósito no mundo em geral, é em si apenas outra componente do nosso antropomorfismo.

Stewart E. Guthrie

Tradução de Desidério Murcho. Retirado do livro Um Mundo Sem Deus: Ensaios sobre o Ateísmo, dir. Michael Martin (Lisboa: Edições 70, 2010).
Notas
Os antropólogos pós-modernistas, contudo, condenam o comparativismo e sustentam que só se pode interpretar uma cultura de cada vez.
Referência ao livro Just So Stories (1902), de Rudyard Kipling, traduzido em Portugal com o título Histórias Assim Mesmo (Caminho, 1999). Neste livro explica-se às crianças e jovens, de forma engraçada e imaginativa, mas sem base na realidade, vários factos do mundo natural, como as bossas dos camelos. Em biologia e noutras ciências chama-se histórias assim a explicações feitas à medida, mas sem base na realidade, como explicar o nariz dos seres humanos afirmando que existe para que possamos usar óculos. N. do T.
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